Bastidores de “Marighella”

“É dos ditadores não gostar da verdade e dos negros”

6 min readNov 15, 2021

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Do tanto, ou nada, a se dizer em novembro, de consciência, reflexões e particular refôlego na caminhada de subida da montanha da vida (em 2021, trinta já são as voltas ao redor do Sol), resolvi listar algumas emoções e coisas novas igualmente boas (alô, Belchior!) já reveladas neste/por este mês, nele continuadas. Vivê-lo com intensidade é parte da escolha em existir aqui, no presente, mas fazê-lo sob tamanha esperança, de fato, é algo novo. E bom. Sem deixar nada para trás, ou melhor, curando dores, ressignificando traumas e interrompendo ciclos de traumatização (de desenvolvimento, vicário e TEPT), deixarei nas linhas abaixo parte do que bem vi, chorei e já vivi em 2021, novembro, para partilharmos juntes ou não.

Poster “Marighella”

“Marighella” (Downtown Filmes; Paris Filmes, 2019–21): a espera finalmente acabou. Real, complexo, humanizado e incisivo, o longa de Wagner Moura faz jus ao legado do filho de Oxóssi, comunista, poeta, deputado federal e guerrilheiro baiano Carlos Marighella (1911–1969), ressaltando a negritude por vezes ou nunca reconhecida — a escolha de Seu Jorge foi tendência distinta, e política, ao embranquecimento destinado pelo audiovisual do país a personagens negras — , a história e o sentido de resistência armada ao populismo ditatorial de 1964 e suas reverberações nos presentes tempos. Francamente, dispenso o hino nacional, mas vê-lo gritado de maneira raivosa levou-me aos prontos. E de raiva. Lançado no dia de rememoração de seu assassinato covarde, a agência de Marighella encontrará guarida nas contemporâneas e futuras gerações com o registro da grande tela. Por isso, voltar ao cinema é primordial — atenção a todos os protocolos de biossegurança, porque pandemia ainda em curso.

Card exposição “Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros”

“Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros”: estive em São Paulo para me encontrar com esta exposição ainda em cartaz no Instituto Moreira Salles (IMS) (curadoria de Raquel Barreto e Hélio Menezes) e, com Carolina (1914–1977), reencontrei o país Brasil grandioso, exposto, sim, à real imagem dos horrores da violência racial antinegra, indígena e pobre, da gente brutal, mesquinha, bovarista, autocrata e insensível tributária da colonização escravocrata de Quinhentos e Oitocentos e seus radicais bandeirantistas, latifundiários, ditatoriais e do fisiologismo partidário, mas igualmente revelado na beleza da prosa poética, lírica musical e romanesca dos sentidos e visões únicos da pretautora de Sacramento. É dela a sentença “É dos ditadores não gostar da verdade e dos negros”. É dela o brutalismo poético (Conceição Evaristo) sem par e de esperança sobre o que somos. É dela o pretoguês falado nesta paragem ladino-americana da diáspora, como assentara Lélia Gonzalez (1935–1994), igualmente saudado no Museu da Língua Portuguesa, retornado em todo seu esplendor. Reação maior ao europeísmo é falá-lo aos quatro ventos, considerando-se seus tropos iorubá, fon, quimbundo, quicongo, ovimbundo, guarani, yanomami, árabe, basco. Ou gritá-lo. Ou chorá-lo. Eu chorei com ambos, “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros” e o Museu da Língua Portuguesa. Carolina é o Brasil. Só por isso, por ela, e nela, eu acredito. Aliás, deveríamos.

Poster de “The Harder They Fall”

“The harder they fall” (Netflix, 2021): traduzido como “Vingança e castigo” para o Netflix brasileiro, o longa de estreia de Jeymes Samuels na grande tela é sublime: a reabilitação de personagens negras do Oeste estadunidense, a altivez, segurança, brutalidade e doçura com que cada ume foi construíde colorem de brilhantismo, orgulho e complexidade a agência negra nos Oitocentos e Novecentos da nova colonização genocida daquele país, com trilha sonora (Jay Z é parceiro de Samuels na escritura da trilha), fotografia e performances impecáveis (Idris Elba, Regina King, Jonathan Majors, Zazie Beetz, Delroy Lindo e Lakeith Stanfield como Rufus Buck, Trudy Smith, Nat Love, Stagecoach Mary, Bass Reeves e Cherokee Bill, respectivamente, dão o tom qual eletrizante da trama — repleta de história). Confiram a resenha brilhante de Alê Garcia a seu respeito.

Poster “A menina Akili e seu tambor falante, o musical”

“A menina Akili e seu tambor falante, o musical”: inspirado no livro “A menina Akili e seu tambor falante”, da artivista e doutora em Engenharia Florestal Verônica Bonfim (Nandyala, 2016. Ilustrações de Luciano Lima), o musical infantil retrata com singeleza, referência, ancestralidade, doçura e acalanto as aventuras de Akili no reencontro das histórias das ancestrais da diáspora brasileira com a grandiosidade de suas contrapartes em África, espalhando-as qual as sementes da Baobá a partir de Adimó, sua aldeia, junto ao melhor amigo Aláfia — um tambor falante — . Crianças negras no centro e como presente de futuro próspero no porvir, a artivista baiana resgata a infância em seu caráter político. A peça permanece em cartaz no canal YouTube do Oi Futuro, sábados e domingos, às 16h, até 21/11. Não percam!

Poster de “Colin in Black and White”

“Colin in Black and white” (Netflix, 2021): a minissérie documental sobre a trajetória de Colin Kaepernick traz a violência do racismo cotidiano, suas microagressões e a brancalização das subjetividades para apresentar a história das desigualdades e assimetrias sociais do país sob a ótica racial. Com direção de Ava DuVernay, é outra produção que merece um tempo a dedicar.

“The 1619 Project” e “Born on the Water”, de Nikole Hannah-Jones

“1619 Project” e “Born on the water” (Penguin Random House, 2021): de autoria da jornalista Nikole Hannah-Jones, os lançamentos compreendem a editorialização do Projeto 1619, de 2019, para o New York Times sobre a agência negra na construção democrática à americana. O primeiro é coletânea revistada e estendida de artigos de historiadories e outres especialistas em história negra, escravidão e democracia, e o segundo realiza sua síntese em literatura infantil — aliás, em volume belissimamente ilustrado por Nikkolas Smith — . Em tempos de revisão da Lei de Cotas, censura à liberdade de cátedra e promulgação de leis estaduais de banimento ao ensino da Critical Race Theory (CRT), ou Teoria Crítica Racial (TCR), nas escolas públicas estaduais do país ao Norte, fiquemos atentes.

Poster de “Passing”

“Passing” (Netflix, 2021): traduzido em português como “Identidade”, o longa com direção (MA-GIS-TRAL!) inaugural de Rebecca Hall é estreia da quarta, 10 de novembro, no Netflix, e é baseado no romance homônimo (em inglês) de Nella Larsen (1929) sobre Irene Redfield (Tessa Thompson) e Claire Bellew (Ruth Negga), mulheres negras e amigas que, após anos, reencontram-se, com Bellew tendo ascendido fingindo ser branca. Em 100 minutos de completa tensão, temas como colorismo, passabilidade (tradução livre de passing), color blindness, violência racial, maternidade compulsória e classismo são expostos de maneira sutil, mas não menos brutal, e complexa. Preparem-se. Obs: no Brasil, o romance foi publicado como “Identidade” pela editora Harper Collins Brasil (2020).

Sumário nem tão breve assim, mas igualmente não prometido, reservo ao novembro de 2021, de tantas revoluções, meus respeito e reverência como pedidos de força, serenidade e coragem no enfrentamento aos desafios, chagas, sangue, outras dores e, esperemos, alegrias ao que se avizinha.

Permaneçamos aqui.

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ACERVO DE COMUNICAÇÃO DECOLONIAL, INTERSECCIONAL, ANTIRRACISTA, CIDADÃ E COMUNITÁRIA ATUALIZADO POR MEMBRES DO COLETIVO PRETARIA. UM PROJETO DO PRETARIA.ORG