88%

Coletivo Pretaria
3 min readSep 11, 2023

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Há uns meses eu ganhei, do meu querido cunhado, um teste genético de ancestralidade. Digo, eles pegam as células retiradas da minha bochecha que esfreguei em um cotonete, analisam e mapeiam de quais regiões do mundo os meus genes vieram. O resto fica por conta da História e da pesquisa que se faz por meio da nuvem que ele traça no mapa-múndi (pelo menos nesse teste em específico, pois há os que também indicam até as etnias).

Eu fiquei curioso com o resultado. Bastante curioso. Apreensivo, até. Na semana passada, ele chegou, e tive o veredito: eu sou… negro. Descobri que 88% dos meus genes são da África – em maioria, do oeste africano, seguido de Costa da Mina e leste africano. Regiões onde, por exemplo, mais de 400 povos do grupo bantu, como os bakongo e os ambundo, se estabeleceram. Eu sou negro!

Não que eu não soubesse que eu era negro, já que, por aqui, eu sempre tive espelho e polícia perto. Fiquei feliz com o resultado, porque eu temia o Fantasma do Teste do Neguinho da Beija-Flor. Lá em 2007, dentro do projeto Raízes Afro-brasileiras da BBC Brasil, ele fez um teste genético e descobriu que tinha 67,1% de genes oriundos da Europa. Mesmo o Neguinho da Beija-Flor sendo um homem negro retinto como eu, o resultado dele deu que as suas origens eram mais do norte do norte da África do que da África em si.

Confesso que rolou um micropânico aqui quando fiz o teste, mas ele passou depois que eu vi que a Europa corresponde apenas a 9% dos meus genes. Isso é menos do que um refresco – que, para ser chamado de tal, precisa ter uma quantidade mínima de 10% de suco da fruta de origem. E fiquei bastante feliz em ver que, mesmo não sendo o “puro suco”, eu sou néctar de África.

Mas por que rolou esse pânico com a minha identidade? É que, por ser um homem negro de pele escura – ou seja, parte dos 10,6% de brasileiros segundo o IBGE –, eu nunca me vi além de uma identidade que fosse a de ser uma pessoa preta. Eu nunca fui questionado e nunca me questionei sobre isso. Como sempre me vi essencialmente como preto, ser, para mim, sempre foi a mesma coisa que ser preto. Por isso, eu nunca precisei me descobrir como uma pessoa preta, em algum momento da vida, como aconteceu com tantos amigos meus. Eu pensava, logo, era preto, simples. Mas precisou a probabilidade de um teste genérico me provar que não era exatamente assim para me tirar dessa certeza de identidade. E identidade é uma coisa à qual a gente se apega bem.

Sim, entendo. O preconceito no Brasil é muito mais pelo fenótipo do que por uma questão puramente genética. Afinal, não conheço um PM sequer que dê dura perguntando pela linhagem familiar no lugar de julgar pela cor da pele. E lógico que estou ciente que basear a identidade em critérios meramente genéticos é algo tão pobre que já criaram guerras e religiões apenas para validar isso. Mas, no fundo, no fundo, para quem teve a árvore genealógica podada no tronco e os documentos queimados após um sequestro de 388 anos, isso pode ser, sim, um pequeno farol para se responder àquela pergunta infantil – e, por isso, muito sábia: de onde a gente veio? E eu digo isso do alto do meu lugar de fala. Ou dos meus 88% de africanidade.

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