A NECESSIDADE DO REABSURDAR-SE

Coletivo Pretaria
3 min readApr 2, 2021

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Estudei com um amigo que louvava a ditadura militar por pura osmose familiar. “Era só ficar na linha”, dizia o nascido nos anos 90. Uma vez levamos uma dura em um ônibus. Dura level 1, nada além de fuzil apontado e revista. Já na faculdade, horas depois, ele só sabia tremer e chorar. Não suportou o trial.

Eu ri dele? Ri. Não me orgulho disso, mas ri. Automaticamente eu pensei: “Ah, sério que essa pessoa é carioca e nunca tinha levado uma dura?”. Afinal, levar dura é algo tão carioca que praticamente vem do biscoito Globo e do mate na praia. Até lembrar disso neste momento em que estou escrevendo me faz rir, mas de nervoso, por conta do absurdo que, de fato, é. Em uma cidade em condições ideais de temperatura e pressão sociorracial, qualquer pessoa que tivesse um fuzil apontado na cara deveria tremer e chorar mesmo. Mas aqui é Rio de Janeiro, onde viaturas desfilando com o cano da arma para fora também disputam com a paisagem. Principalmente se o alvo porta uma certa quantidade de melanina.

Neste exato momento, a cidade bateu um novo recorde de mortos por conta da pandemia, e a média móvel de mortes no país passou, pela primeira vez, de 3 mil. Pela lei do absurdo, todas as autoridades deveriam estar caindo uma por uma, de cima para baixo, sem distinção. Optar por ter quase 4 mil mortos por dia por puríssima incompetência de gestão — e uma incompetência orquestrada, com critérios tecnicamente tétricos — deveria ser algo de se resetar o sistema inteiro. Porém o que se faz é festa. Mais festa. Ou se sai de casa por motivo fútil alegando “saúde mental”. Seria porque a covid no Brasil é mais mortífera entre pessoas de pele escura?

A covid não está levando embora só o olfato e o paladar das pessoas. Parece que o nosso tato sobre o absurdo do todo foi arrancado ou se encontra forçadamente anestesiado pela vitória das mentiras, da sociopatia e do autoengano. É o “Ordem e Progresso” da bandeira substituído pelo “Foda-se a vida” da blogueira enquanto um soldado e um cabo fecham o Congresso cantando a primeira frase do novo hino nacional: “E daí?”.

Nesta Sexta-feira da Paixão, vale lembrar também do sofrimento daquele preso político-religioso, um processo do qual muitas vezes nos esquecemos: ele foi cuspido, chicoteado, teve espinhos cravados na testa por pura zombaria, foi obrigado a andar nu com um instrumento de punição governamental na frente da mãe e, após ter mãos e pés pregados no mesmo, foi deixado lá para sangrar até morrer. Nada que a ditadura militar brasileira não tenha feito, não exatamente nessa ordem, com milhares de brasileiros — ditadura essa que, hoje, é cultuada por muitos que se dizem adoradores de um messias que passou por tortura.

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