A Revolução será Preta, Feminina e Periférica
Fabíola Oliveira é mulher preta subvertendo o sistema racista, dando de ombros à sedução da intelectualidade branca e agindo diariamente como educadora social na formação de jovens negros (as) em seres políticos.
Desde que comecei a colaborar com o Coletivo Pretaria dividindo aqui meus pensamentos e escritas venho refletindo sobre como falar, jogar luz em questões que julgo relevantes sem obrigatoriamente produzir nos(as) leitores(as) um sentimento que, sistemática e estrategicamente, vem sido impelido ao nosso povo: tristeza.
Minha agenda com a coluna é mensal, eu tenho um certo tempo para pensar no que vou escrever e como farei, mas, confesso a vocês de coração aberto, que a cada dia meu desejo de entretê-los sem que nos sintamos tristes fica mais difícil! Quando eu poderia imaginar que em meio ao assolamento sanitário causado na população pelo novo vírus Covid-19 — e aqui no Brasil, fundamentalmente em pretos(as) — nós também estaríamos sangrando pelas mortes de nossos João Pedro, George Floyd e tantas outras vidas negras? Como desconsiderar o panorama, fugir dessa diligência branca, racista e desumana cujo projeto genocida visa a morte dos meus e trazer sopro, respiro, ar, possibilidades, sonhos?
Eu decidi falar de potências, de figuras que se interpõem corajosamente frente à engrenagem assassina do Estado que tem cor e classe estabelecidas. Eu quero dizer para vocês que mesmo chorando, mesmo sangrando, mesmo quase desistindo todos os dias, há caminhos, sonhos, sopros de vida e possibilidades. Faço isso a partir das histórias! Histórias são como mãos que se estendem para que nós, corpos cansados e com medo, possamos não ter a menor dúvida de que se para sermos negros(as), ainda tenhamos que chorar e sangrar pela perda e sofrimento dos nossos, nós seguimos. Porque nenhum deles(as), os(as) brancos(as) poderão escrever livros com histórias tão poderosas como os nossas!
Na coluna de junho divido com vocês parte da história e o ofício de Fabíola Oliveira, mulher preta e periférica que com seu trabalho e olhar de integral feminino legitima potentes e sagrados espaços onde o Estado despeja seu ódio racista.
Peço licença a vocês para apresentar esse texto em forma de entrevista direta, por entender que não se edita falas como a dessa mulher preta a qual, mesmo tendo sido oferecidos todos os ferramentais da intelectualidade que a branquitude se utiliza para nos seduzir, preferiu refazer o tortuoso caminho ao encontro da sua ancestralidade, ou como ela mesma gosta de significar: o chão da vida.
O matriarcado dá conta de definir o Estado Laico muito antes dele mesmo!
De onde vem essa diretriz de solidariedade na sua história de vida?
Minha mãe! Começa nela e por causa dela conheci muitas mulheres. Antes de imaginar a terminologia matriarcado, que eu conheci no CEFET|RJ (Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro) no movimento estudantil, mas com mais força e entendimento amplificado na faculdade. Me reconhecendo politicamente o que significava ser preta. Quando fui começando a me conectar com esse termo eu pensei: Conheci isso com Dona Maria da Penha, minha mãe! E tantas Donas que passaram pela minha mãe; Valéria, Nathália, Nana… Conheci essas mulheres no espaço do Candomblé e também vivi com muitas mulheres praticando o debate inter-religioso na minha vida, por meio de Dona Zefinha, Irmã Glícia, Jupira (essas evangélicas…). O matriarcado dá conta de definir o Estado Laico muito antes dele mesmo se definir. O matriarcado sabe que a potencialidade da mulher está na espiritualidade, de como desejam transcender e reconhecer isso em suas vidas. A espiritualidade não tem placa. A nossa religiosidade é atravessada pelos códigos. Quem é que pode chamar para si a espiritualidade, dizer que ela tem um nome único?
Eu já havia sido mergulhada nas temáticas matriarcado e debates inter-religiosos desde muito cedo por causa dessas mulheres que careciam de solidariedade de outras mulheres para seguir com suas vidas. Minha mãe, por exemplo, dependia de outra mulher que tomava conta de mim para poder ir trabalhar. Se eu agisse diferente disso seria uma genocida da nossa linhagem!
“Se eu agisse diferente disso seria uma genocida da nossa linhagem.”
Qual é o papel do Odarah Cultura & Missão?
O cerne do trabalho do Odarah é fazer formação cidadã a partir da apresentação desses equipamentos educacionais, de saúde e profissionais e promoção de uma formação cidadã para que as pessoas se inteirem do funcionamento do sistema social do Estado. E não mais estejam dependentes do Odarah para se tornarem seres atuantes sócio-politicamente. Vivemos de conectar essas pessoas a um Brasil funcional para elas e de agir para transformá-las em multiplicadores em suas comunidades, na perspectiva da autonomia.
Levando em consideração que nosso país é forjado sob o ferro e fogo do racismo, como você enxerga a movimentação preta e feminina nos espaços periféricos? Como isso te impacta?
São muito parecidos com o ambiente de onde eu vim e o que hoje estou. As mulheres se movimentam de forma muito parecida, tanto nos espaços evangélicos quanto nos terreiros de religião de matriz africada. A ancestralidade grita alto aí! Os códigos dão conta dos hábitos (as mulheres nas igrejas pentecostais não rezam, oram), já as mulheres de terreiro usam seus turbantes e saias de ração. As duas são pretas e alvos do escárnio de uma construção intelectual e social que não as valorizam.
A gente sabe que muitos desses Ebós (oferendas) que são despachados naquela rua é para proteger a própria região, e mesmo assim as pessoas riem, demonizam. Da mesma forma que riem das mais velhas que estão nas pentecostais fazendo seus cultos em praças públicas ou batendo de porta em porta para falar de Jesus.
Sobre a pergunta. Sou uma mulher que orienta minhas leituras a partir do Mulherismo Africano. Eu não parto da dicotomia, disputa de gênero. E por causa disso, a construção comunitária está à frente das questões de gênero para mim. Não dá para fazer cabo de guerra entre homem e mulher porque forças iguais se anulam. Homens pretos são mais de 60% do público carcerários e nós mulheres negras somos 69% das que sofrem violência doméstica.
Tem a ver com a nossa existência e mulheridade que dá conta de perceber afetos que ninguém percebe, nossa corporeidade de mulher preta. Ainda que a gente não conhecesse essas histórias já sabíamos que essa é a mulher do cuidado. O racismo operou muito nessa lógica do assistencialismo e da sobrecarga da mulher preta. Nós mulheres negras amamentávamos os homens presos nos troncos, nas senzalas, feridos, para evitar que eles morressem de inanição (intenção dos feitores). Jogávamos leite em cima das feridas desses homens e eles se curavam.
O que faz a movimentação ser feminina é porque mulher preta xinga, quebra o joelho de um se tiver que fazê-lo mas é porque ela faz leitura de alma que é típico de quem vive inserida uma mulheridade integral (espiritual, social, afetiva). A gente não divide as pessoas em compartimentos. A mulher educa, bate (se for necessário) e acolhe, fortalece! Isso é característica de mulher que sente, que olha no teu olho. O modo de fazer política efetiva hoje em dia, se não passa por essa integralidade que a mulher carrega em si, ele é não é inteiro. A gente precisa olhar as coisas a partir de sua integralidade. Uma mulher preta já trabalha no sistema de equidade há muito tempo. Minha mãe ajudava uma família e fazia uma compra de 800 reais, numa época que isso era dinheiro. Todo mês ela adaptava as compras à real necessidade de cada família. Essa memória, baliza muito nosso trabalho no Odarah. A gente não consegue estar em todas as casas. Mas, pelo menos uma vez na semana eu entro em contato com todas as famílias que a gente fortalece. E pelo jeito que a pessoa se comunica comigo eu sei que está acontecendo alguma coisa. Por isso é importante conhecer as pessoas. Para o Odarah as pessoas não só nome, RG, WhatsApp e e-mail. Eu sei quem é aquela pessoa, com quem ela se relaciona e como certos eventos e acontecimentos afetam a vida dela.
O racismo operou muito nessa lógica do assistencialismo e da sobrecarga da mulher preta… O modo de fazer política efetiva hoje em dia, se não passa por essa integralidade que a mulher carrega em si, ele é não é inteiro
Como é ser uma mulher preta que atua no campo do trabalho social e age combatendo o racismo social e religioso? Como é ser negra e, dentro da periferia, pregar o evangelismo real, não necessariamente representado na figura de um Jesus branco e de olho azul?
Uma das nossas decisões em relação a nossa caminhada cristã é fazer a manutenção do Odarah enquanto uma instituição não religiosa. O trabalho do Odarah é cidadão e político. Entendimento de construção política enquanto um elemento de incidência de transformação social e efetiva. A centralidade do Cristo é de paz, alegria e justiça. Em nenhuma medida é uma centralidade religiosa. O cerne da briga de Jesus era com os sacerdotes e religiosos que faziam um controle social dos corpos das pessoas a partir da moralidade da religião. Quando Ele defende a mulher adultera, quando ele opera milagres no sábado (contrariando o judaísmo), quando conversava com mulheres, caminhava ao lado de mulheres e as tinha como mantenedoras do seu ministério…Jesus lavou pé de pessoas, considerado um trabalho de servos.
Nós ajustamos o código e a linguagem de acordo com a região na qual a gente trabalha. Quando estamos em Anchieta, no pé do complexo da Pedreira, e falamos que Jesus era um Cara que não tinha onde recostar a cabeça. Quando a irmã que compra o discurso religioso e racista ouve isso ela se identifica com essa passagem de Jesus. Quando ela descobre que o Senhor que ela serve também viveu uma situação parecida ela deduz: “Esse Cara só pode ser parecido com ela!”
A reconstrução do nosso povo e a quebra do jugo do racismo só se dará com conhecimento acerca da nossa própria história.
A favela é meu lugar no mundo! Descobri que eu estava vivendo um processo de embranquecimento e que eu precisava voltar para as minhas origens e falar a linguagem da favela. Voltei a morar em comunidade, o que me fortaleceu brutalmente. A gente vai falando de Fanon, Milton Santos, Kabengele Munanga, sem necessariamente citá-los e intelectualizar o diálogo, afastando nossos ouvintes, mas traduzindo e servindo à comunidade com esses saberes.
A gente vai falando de Fanon, Milton Santos, Kabengele Munanga, sem necessariamente citá-los e intelectualizar o diálogo, afastando nossos ouvintes, mas traduzindo e servindo à comunidade com esses saberes.
Há algum tempo você vem investindo seu tempo e capacidade de trabalho e criação nas regiões periféricas do Rio e durante esse período de pandemia, as coisas se intensificaram. Fale um pouco sobre isso. Sobre suas percepções a respeito do trabalho comunitário e as implicações do Covid -19 nessa realidade.
Aumentou drasticamente! A gente já encara fome e pobreza, falta de saneamento dentro na nossa rotina, do cotidiano. Estamos assustados com o aumento dessa realidade. Pessoas que estão com o pé no chão da vida não se assustam com falas realistas sobre o Covid-19. Esse vírus veio para descortinar e tornar público que a gente vê diariamente (miséria e podridão do sistema).
As pessoas com as quais a gente caminha produzem trabalhos que as remuneram semanalmente, pontualmente. Com o que se ganha já dá para fazer uma feira, comer proteína uma vez por semana etc. Por conta da pandemia, essas pessoas não estão vendendo, não estão indo para a praia, não estão vendendo cerveja no sinal. Essas pessoas não têm o que comer. Piorou muito e essa piora fez a gente entender que precisava ampliar essas urgências. Se nosso trabalho era providenciar a interface dessas pessoas com os aparatos sociais, educacionais e de saúde do estado a um médio e longo prazo, hoje procuramos garantir a segurança alimentar da nossa comunidade. Por que a empada que se vendia diariamente na estação do BRT, não se vende mais.
Você se acha ou enxerga sua trajetória como revolucionária?
Uma das coisas que eu bato a cabeça é acessar o entendimento da importância do Odarah Cultura e Missão para a sociedade. E difícil responder porque a gente está num miolo e a gente está fazendo e sendo afetado diretamente por esse processo. Só consigo responder essa pergunta pelo o que meu trabalho tem me revolucionado.
Descobri que eu entro nesses espaços não como técnica e sim como comunidade e pelo fato de eu ser comunidade como eles eu partilho. Juntos decidimos o que vamos fazer com aquilo. Se o nosso trabalho ajuda meninos e meninas a terem suas vidas melhoradas. Partilhar com eles isso tudo que me faz sonhar me revoluciona, transforma minha história e vida. Esse entendimento comunitário de caminhar ao lado de meninos e meninas em privação de liberdade foi o que me tornou mãe. E sobretudo, me tirou de um lugar de extrema arrogância e presunção que a branquitude me colocou. A branquitude é muito sedutora e você se envolve numa falsa realidade de que você se pensa ouvida, escutada. O processo que o Odarah me apresentou me provocou a me colocar na minha centralidade preta africana e a construir minha espiritualidade comunitária e integral. Uma das coisas que esse processo faz a gente se colocar é o de não Guru. A gente não quer ser coach e nem organizar metodologia de vida para ninguém. A gente quer apresentar conhecimentos e seja você responsável e autônomo para decidir o que vai fazer com isso. Malcom-X dizia: “Quando você apresenta um copo de água sujo para alguém que está com sede, essa pessoa vai beber a água suja. Escolha é se diante dela tivesse dois copos — um com água suja e outro com agua potável — e você explicasse a história de cada copo. Aí sim essa pessoa terá escolha!” A gente tem falado o que sujou a água e o que faz a água ser potável. E ai as pessoas escolhem! Aí sim é autonomia!