Foto de Ovelha Negra Rock Angola

A SONORORIDADE (OU PODE O PERIFÉRICO ROQUEAR?)

6 min readApr 10, 2023

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Há uns dias eu terminei de ler o livro “We do rock too: formas de criatividade do movimento do rock angolano” (EdUERJ), de Melina Silva, e confesso que fiquei extasiado com diversas situações que foram abordadas pelo extenso — e riquíssimo — trabalho da doutora. Uma delas é como a dinâmica da cena underground angolana, guardadas as devidas proporções, tem pontos bem parecidos com a nossa dos anos 1990 para cá, como a dificuldade para comprar bons instrumentos por preços decentes, a falta de lugares de pequeno e médio porte para tocar e que aceitem eventos de rock, a complexidade de se criar um “ecossistema” (a cena) que permita que artistas, frequentadores e produtores coexistam sem se matar…

É claro que, durante a leitura, o que eu botei em paralelo foi a própria roqueiragem carioca, vivência que me levou a ser jornalista e que me serviu de base até para a minha monografia em Antropologia. Foi durante essa pesquisa que eu percebi uma coisa bem interessante: os eventos onde eu estava, nas décadas de 2000 e 2010, eram todos periféricos e frequentados, em maioria, por gente periférica. Pode contar: Garage, Rato no Rio, Tomarock, Rock na Ladeira, R9, as quadras e casas de show alugadas para os eventos… Tirando o Empório e outros lugares importantíssimos, como os extintos Ballroom e o Saloon 79, quantos lugares de rock carioca ficavam na Zona Sul?

Eu puxo essa geografia, que também é uma racialização, para trazer uma outra questão que mostra que nós somos muito mais semelhantes aos angolanos do que parece: contrariando os clichês sobre a brancura e o “tradicionalismo” do rock — e não menospreze os clichês, pois eles trabalharam muito pra chegar aonde chegaram –, o underground carioca é, pelo menos, desde a década de 1990, formado por muita gente negra. Essa mesma cena que formou totens como O Rappa e o Planet Hemp, por exemplo, nasceu de uma rede musical bem típica da cidade. Os bares e casas de shows que tocavam funk e samba, por exemplo, tinham umas “janelas” com datas bem específicas e raras, para que eles fossem alugados aos eventos de rock (e que davam menos lucro pros lugares por atrair menos gente). E também não era incomum que muitos “não roqueiros” emprestassem ou intercambiassem seus equipamentos com os os grupos e até as suas sonoridades com os roqueiros. Quantas bandas de “funk rock”, como o Funk Fuckers, ou de “sambalanço rock”, como a Banda Bel e o Farofa Carioca, surgiram nessa época?

Para que essa cena de rock existisse no Rio, foi necessário que houvesse algo similar ao que ocorreu na cena nova-iorquina de hardcore nos anos 1990, conforme mostra o documentário “N.Y.H.C.” (1995): uma grande solidariedade entre as pessoas que conviviam nos mesmos espaços físicos, indo do intercâmbio de equipamentos às técnicas de execução musical, além de também uma miníma empatia entre quem está batalhando para fazer música, mesmo que de estilos diferentes. Isso é o que eu venho chamando de sonororidade.

E que me perdoem os pesquisadores em geral por eu já querer sentar na janelinha dos que criam terminologias. É que eu sempre quis ter um termo para mim, sabe? Essa é uma das grandes glórias da minha profissão. Na redação do jornal O Globo, onde eu já estou em meu 9º ano como repórter, os jornalistas Carlos Albuquerque (Calbuque) e Tom Leão, por exemplo, pegaram toda aquela vergonhosa balbúrdia promovida por playboys porradeiros em boates nos anos 1990, batizaram essa galera de “pitboys” e o termo pegou. Já a premiadíssima Vera Araújo, que cobre segurança pública, deu um jeito de fazer com que, nos anos 2000, os grupos paramilitares do Rio que promovem assassinatos e extorsões em diversos bairros da cidade pudessem ser resumidos a um nome que coubesse em uma manchete: “milícia”. Até acreditava-se que o termo “metaleiro” teria sido criado pela Glória Maria durante o primeiro Rock In Rio, para falar dos amantes de heavy metal, mas, infelizmente, isso é apenas uma lenda. Por isso, eu reivindico a ideia de sonororidade, essa união entre sonoridade, solidariedade e sororidade que eu já havia levantado na Rio2C de 2020 durante a mesa “Música em Movimento — As vibrantes cenas periféricas” e que, desde então, tenho dado umas aprumadas. Afinal, isso é algo que só poderia ter nascido, logicamente, de uma cena independente periférica, demasiadamente periférica.

Explicarei. Sabe aquela máxima de que, nas comunidades brasileiras, existe, entre os moradores, uma solidariedade muito forte que é movida pela necessidade? Grosso modo, a sonororidade é isso, para se falar do nosso underground onde muita coisa precisa ser compartilhada para acontecer, com um músico emprestando, por exemplo, um baixo e uma caixa de som de um lado, um outro cedendo uma mesa e um prato de bateria do outro etc. Eu já toquei com a minha ex-banda (o 5P, que já foi o segundo grupo mais famoso da minha rua) em muitos eventos feitos, como a gente dizia, “na rataria”, onde praticamente todos os elementos físicos do palco eram emprestados. Era praticamente um comunismo musical. Ah, os locais dos eventos? Bares, restaurantes, salões paroquiais de igrejas, quintais cedidos por alguma tia legal, pracinhas e calçadas subutilizadas, campinhos de futebol, festas juninas… Puro suco de sonororidade.

Tudo isso parece bem inocente, mas estamos falando de um terreno pré-redes sociais, onde reinava, de início, o mais profundo amadorismo. Lembro de bandas que chegavam para tocar nos eventos sem os seus devidos instrumentos, porque ninguém pediu para que eles levassem, por exemplo. E o uso deles, muitas vezes, também não era lá muito… profissional. Uma vez, durante um show meu em uma antiga escola de música de Jacarepaguá que promovia shows independentes (Elam), o guitarrista que a gente tinha chamado recentemente para tocar só percebeu que não havia ativado o seu próprio pedal lá pela terceira música, e isso foi graças a um outro amigo que, imbuído de sonororidade, subiu heroicamente no palco e, desviando do corpo saltitante que balançava com um microfone de um lado para o outro (eu), foi lá e ligou o pedal. Foi só depois disso que eu entendi o porquê de a gente estar, naquele momento, mais sonoramente parecido com o Roupa Nova do que com o Sepultura. E sim, isso é uma piada entre os meus amigos e eu até hoje.

Esses perrengues nada chiques, porém, muito satisfatórios, também foram o retrato de um momento em que, acredite, se podia circular com menos ressalvas pela cidade, fosse por conta do preço de passagem (já que acesso a transportes públicos conta, e muito, para o sucesso de uma roqueiragem dessas) ou pela segurança mesmo, já que nem todas as regiões da cidade eram dominadas pelos verdadeiros “donos da biografia”, como já disse Marcelo Yuka em “Hey Joe”. Foi também por causa desses elementos mais pragmáticos que grande parte desses eventos de rock foi capaz de existir. E a sonororidade era a amálgama de tudo isso.

O mais interessante é que, quando eu achava que isso tudo tinha virado apenas coisa “da minha época”, já que eu ainda estava muito rockcentrado, eu comecei a ver uma outra galera unindo o seu próprio estilo, seja no rap, no trap ou no funk, com ritmos como samba, pagode, heavy metal, piseiro etc., e também compartilhando os seus estúdios, beats, lugares e referências dentro e fora da internet. Vejo que terei muito material para definir ainda melhor essa tal sonororidade. Ainda bem.

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