AFRICANOS DEMAIS

Coletivo Pretaria
4 min readFeb 4, 2022

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“Vocês estão falando em africano?”

Naquele banco, estávamos nós três juntos, como sempre, desde a sétima série. Nós estávamos do lado de fora da escola, de uniforme, rindo de nossas bobagens e piadas internas. A gente falava como a gente sempre falava mesmo: três moleques pretos, retintos e nerds. Não, não estávamos “falando africano”, mas o pretuguês típico da Zona Oeste carioca. O senhor aleatório que brotou do nada para mandar essa na “nossa lata” sabia exatamente o que estava fazendo ou o que queria provocar.

Corte temporal, Casa da Matriz. Pista da casa noturna cheia, drinques e synthpop rolando nas caixas. Ela me olha com aquele olhar de cobiça. Ela dança. Ela chega perto. Ela me puxa. Ela cochicha no meu ouvido:

“Gosto muito do seu povo”

“Meu povo?”

“Sim! Eu me identifico muuuito! Eu faço capoeira e estou aprendendo iorubá também”, diz ela enquanto ensaia dar uma meia lua no meio da pista ao som de Depeche Mode. Ela continua, eu finjo que vou beber e saio.

Outro corte temporal, pista do Circo Voador. Eu estava assistindo a um show e me interessei pela amiga da minha amiga. Pedi para que ela intermediasse o interesse — o popular “desenrolo” — e ela assim o fez. Porém, ela voltou cabisbaixa.

“Ela não quis, né?”, perguntei, já resiliente. Mas não era só isso.

“Ela até te achou bonito, mas também africano demais”, respondeu.

“Africano demais?”.

“Sim, africano demais”.

Africano. Demais.

Como um brasileiro preto retinto que passou por essas situações e inúmeras outras parecidas, eu nunca precisei sequer conhecer um africano que morasse por aqui para saber como é que um era tratado ou abordado. O “africano”, no Brasil, sou eu.

BRASIL NO ESPELHO

Se você ainda não sabe o que aconteceu durante os 388 anos dos 522 de existência do Brasil, é melhor googlar a tempo. Foi por causa esse período que o Brasil se tornou “africano demais”.

Depois desse regime econômico altamente lucrativo, veio a vergonha. Não da riqueza gerada, mas dos que aqui onde, hoje, é o segundo país com mais gente negra do mundo, trabalharam de graça até a morte. A solução foi simples: sumir com todos os negros que restaram. E houve diversas formas de se fazer isso.

Porém, isso não seria possível se os africanos entrassem, dessa vez, livremente no país. Por isso, dois anos após a Abolição, se proibiu que o país recebesse imigrantes africanos por meio do Decreto 528 de 1890, enquanto os da Europa (leia-se brancos) entrariam livremente — inclusive, sendo estimulados para isso. Em 1921, há apenas 101 anos (quantas gerações cabem aqui?), um outro projeto radicalizaria ainda mais a questão ao querer proibir a entrada no país de todos “os humanos das raças de cor preta”. E o “humanos” pontuado aqui do texto era apenas por uma questão de burocracia jurídica.

A partir de então, ao proibir os “africanos demais” no Brasil, o Brasil se empenharia, com todas as forças, a brigar com a imagem que mais o amedrontava: a dele mesmo. No espelho.

PAÍS MAIS RACISTA DO MUNDO

“O estado brasileiro era responsável pela proteção de Moïse, como é responsável pela proteção de todo cidadão”, declarou o embaixador da República Democrática do Congo no Brasil, Mutombo Bakafwa Nsenda, em entrevista ao Globo sobre o assassinato brutal do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe na Barra da Tijuca. Porém, Moïse, negro retinto, já era “africano demais” antes mesmo que seus agressores soubessem de sua origem. Por isso, como tal, não era visto com um cidadão conforme demonstra a completa falta de remorso de um de seus assassinos. Moïse, que foi cobrar o seu salário atrasado, foi tratado como um elemento. O jargão policial sabe diferenciar muito bem quem, nas abordagens, é chamado de “elemento” e quem é chamado de “cidadão”.

Moïse também recebeu a sentença que, historicamente e racialmente, é destinada aos ladrões — afinal estamos falando da cidade onde os ditos cidadãos espancam e amarram os ditos elementos em postes. Porém, o ladrão, no caso, era o patrão de Moïse. Se essa lei do Talião valesse, de fato no país, o espancado teria sido o dono do quiosque. Mas não. O Brasil é racista demais para perder a oportunidade de matar uma pessoa negra em todas as ocasiões possíveis e imagináveis.

O Brasil não inventou o racismo moderno, porém, assim como o futebol, o levou a um outro patamar. Ninguém consegue ser tão racista quanto o brasileiro, já que, ao contrário dos legitimamente racistas que afirmam o seu racismo mesmo que de forma tímida, ele nunca é afirmado. O brasileiro que integra os 4% do país ao se afirmar claramente racista é rechaçado pelos próprios racistas, já que, nesse contexto, ele é um dedo-duro.

Nesse contexto em que o racismo existe sem a possibilidade de que se aceite a existência dos racistas, o Brasil se torna a nação mais racista do mundo ao eliminar, de forma literal e simbólica, 56% de sua população. Afinal, um país com uma rede de ódio ao negro tão capilarizada e tão milimetricamente azeitada como esse, que executa um George Floyd a cada 23 minutos enquanto pessoas brancas, além de viverem mais, ganham o dobro de pessoas negras (Oxfam, 2017), não precisa de Ku Klux Klan, nazistas, Lei Jim Crow, apartheid, fórum supremacista, de nada disso para se chegar ao objetivo final. É só conservar tudo como está.

A solução? É só fazer como aquele antigo ditado: pedir desculpas e devolver o Brasil aos indígenas. E os indígenas somos todos nós, os africanos demais.

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