Beyoncé… e “beyond”
A semana passada foi quente em torno do lançamento do álbum visual da Beyoncé, BLACK IS KING. Negras e negros, diaspóricos e de Áfricas, dividiram opiniões a respeito de aspectos técnicos, mercadológicos, estratégicos, estéticos, históricos, ancestrais e fundantes da formação afrodiaspórica. Concordâncias e discordâncias emergiram. TUDO COMO DEVE — ou deveria — SER: nós produzindo pensamentos e opiniões sobre nós.
Sou absolutamente fã de inúmeros textos e impressões produzidas no período por gente preta de diferentes inserções, acadêmicas e não-acadêmicas, que me contemplaram integralmente, verdadeiramente me representam. Teve um texto, em especial, da Anelis Assumpção, que abalaram minhas estruturas ancestralmente.
Aliás, houve prete que dissesse que “perdemos a mão” quando o assunto é ancestralidade. Realmente, nunca na nossa história preta em diáspora mencionamos tanto, diuturnamente, e reverberamos ostensivamente o quanto a ancestralidade nos move, nos protege, nos instrui: o quanto o poder ancestral é percebido, desenvolvido e sentido, como forma de restituir o que nos foi tirado, jamais conhecido por muites de nós — senão todes –, que sempre tivemos, consequentemente, dificuldades em nomear. E se não nomeamos, não existe.
A ancestralidade, portanto, carrega sentidos do que dá sentido às nossas existências, dimensões circunscritas e inscritas nas definições do SER PRETE, que não foram feitas para durar no país moinho de gente, nas Américas; não foram significadas como hereditárias e/ou como valor humano. A ancestralidade nos conecta a uma cosmovisão de que somos continuum de nossos ancestrais, de que nossos corpos são provas sensíveis de essências e existências coletivas, que atravessam como flecha o Tempo, nos REONTOLOGIZANDO, restituindo nosso sentido de ser e existir.
Nas aulas que atendi de Introdução às Filosofias Africanas, de Estéticas Africanas, ministradas por Naiara Paula, Aza Njeri e Katiúscia Ribeiro (mestras absolutas!), tanto no IFCS/ UFRJ quanto no Departamento de Filosofia da UERJ, me ofereceram todo um campo de pensamento desde Kemet, pré colonialismos e imperialismo. Essa imersão — como toda e qualquer que nos coloque NO CENTRO –, aliada ao fato de eu ser africana em diáspora, é fundamental e imprescindível para entender o que é ser prete no Brasil. Entender que “Penso, logo existo” é pouco para que SENTE de corpo inteiro e existe. O que é belo, bom, rico, importante, afinal? Só assim é possível alcançar Lélia, Beatriz, Conceição, Abdias, Angela, Toni, Dubois, Maya, Marcus, Malcom, Luther King, Achille, Hampaté…
É sobre isso que eu quero falar. Quero, a partir do que representou BLACK IS KING sob a perspectiva negra/preta diaspórica, ir além da Beyoncé, “beyond”, deslocar o pensamento um pouco do hype e da “passassão” de vergonha de branques fazendo suas branquices, ditas e escritas. Até nisso já me senti contemplada, houve reação consequente, própria e necessária. Quero proclamar a urgência de um movimento radical e crescente que se instaurou a partir de BLACK IS KING: PRETE FALA DE PRETE.
“Mas, como assim? Então preto (leia-se qualquer outro grupo/etnia) não pode falar de branco, né?”
Branco é UNIVERSAL, cara pálida. Todes somos especialistas em branques. ELES MESMOS FIZERAM COM QUE ASSIM FOSSE, homogeneizando, eurocentrando o mundo ocidental.
Olha que curioso ver isso, assim, escrito?
Existe TODA uma intelectualidade preta produzindo pensamentos sobre Beyoncé e “beyond” a partir de “Foucaults” e “Deleuzes” profícua e intensamente (embora ainda existam branques acadêmicos racistas que não enxerguem e considerem isso), porém buscando SEMPRE dar centralidade às epistemologias afrodiaspóricas e africanas para amparar aspectos que SOMENTE esses pensamentos e cosmivisões são capazes de acessar. Essa intelectualidade preta refuta, em uníssono com as vozes pretas ativistas-militantes extra-muros da academia, a mediocridade branca e sua limitação epistêmica para falar de nós e sobre nós, porque todes pretes somos constituídos das mesmas matrizes culturais negras.
A questão da branquidade acadêmica — e também da não-acadêmica — é, como sempre, estrutural: sente-se permitida a falar de pretes prescindindo da EXPERIÊNCIA e das VIVÊNCIAS indissociáveis, lançando sempre mão de um olhar antropológico, distanciado e falido, diante das manifestações culturais da afrodiápora e de Áfricas. Ou seja, miseravelmente insuficientes e que desembocam, quase sempre, em abismos de equívocos. Até pelas mentes ditas desconstruídas e antirracistas. Como vão entender um fenômeno comunicacional e audiovisual da magnitude de BLACK IS KING se estão aqui, sem alcance, no pattern de oncinha, incomodados com joint-ventures das empresas PRETAS Knowles-Carter com a Disney (Branca de Neve em seus imaginários!) e horrorizados com pretes bilionários — VEJA VOCÊ! — NO OCIDENTE CAPITALISTA? É quase risível — se não fosse triste de reconhecer — tamanha alienação dos próprios pressupostos e visões de mundo que imprimem nas sociedades globais…
Diferentemente do conhecimento branco universal, e como tal conhecido e VIVENCIADO por todes OBRIGATORIAMENTE, existem instâncias de análise que chegam em tal limite que INTERDITAM branques de emitir pareceres sobre nós, já que ingressam em territórios desconhecidos e que JAMAIS alcançarão pleno entendimento e, portanto, nenhuma integridade opinativa. Podem descer todos os teóricos da comunicação e linguagens QUE NÃO DARÃO CONTA.
O Brasil, as Américas, o mundo brancos rechaçam as negritudes e se apropriam de nossas culturas, porém, alienam-se da própria autoria da racialização, dos colonialismos, dos imperialismos, das violências e das subalternizações e, diante dessas fragmentações nefastas, querem dizer o que, como e quando devemos SER e EXISTIR. É disso que se trata.
NÃO MAIS. A vontade é quase incontrolável de dizer: VOCÊS PRECISAM PARAR AGORA! Deixem que a gente assume daqui.
“Nós sempre fomos maravilhoses.
Vejo refletido em nós as coisas mais divinas do mundo.
PRETE É REALEZA
Nós éramos beleza antes que
‘eles’ soubessem o que beleza era.”
(Black is King)
Naiara Paula, te dedico.