Candyman, Candyman, Candyman, Candyman…
Diga o seu nome cinco vezes em frente ao espelho para invocá-lo, caso tenha coragem. O cinema nos instiga e incomoda com sua ilusão de verdade por 24 frames por segundo, feito jogo de espelhos. Os filmes de gênero são os que mais brincam com nossas emoções, principalmente o terror, onde o medo do desconhecido e a angústia do susto são o que conduz as narrativas. A lenda de Candyman (2021) trabalha todos esses sentidos ao criar um terror contemporâneo e certeiro, onde o que mais nos assusta é a semelhança com a realidade.
Como sádicos-masoquistas, o terror nos agrada como gênero exatamente por nos inquietar. Para pessoas negras este binômio psicanalítico é ainda mais aterrorizador, pois normalmente nos filmes do grande cinema — não apenas no gênero terror — personagens negres ocupam papéis bidimensionais que figuram entre o algoz desumano e a vítima indefesa. “A lenda de Candyman” expande a dimensão do terror ao aprofundar a existência negra, criando personagens imergidos em contextos sociais complexos e reais. A vida de pessoas negras muito além da ficção já é bem familiar ao terror. Um tipo de mistura de Freddy Krueger negro com a terror-lenda-urbana brasileiro “Loira do Banheiro”.
Reiniciando a franquia que começou com “O mistério de Candyman” (1992), adaptação do cineasta Bernard Rose do conto “The Forbidden”, de Clive Baker, o filme de Nia da Costa e Jordan Peele cria uma nova abordagem ao personagem que já se tornou uma lenda urbana além das telas. Conta o mistério que Candyman, um homem negro com um gancho invés da mão direita, é uma assombração que vaga pelos arredores do conjunto habitacional Cabrini-Green em Chicago em busca de vingança. Reza a lenda que ele é invocado ao ter o seu nome repetido cinco vezes frente ao espelho e só se satisfaz após dar fim àquele que o invocou.
Se no primeiro longa da franquia o filme flertava com as discussões raciais, ao protagonizar Helen Lyle, uma pesquisadora branca que fica fissurada pela lenda de Candyman, no reboot-continuação atual, que se passa quase 30 anos depois, o vilão trágico sobrenatural é o protagonista. Anthony McCoy (Yahya Abdul-Mateen II) é um artista em bloqueio criativo e vive dificuldades para se adaptar ao cruel mercado das artes, mesmo recebendo auxílio de sua parceira Brianna Cartwright (Teyonah Parris), uma diretora de galeria em ascensão. Amargurado, McCoy busca na figura de Candyman a inspiração que faltava, repetindo despretensiosamente, o nome do personagem em frente ao espelho. Pouco a pouco o artista começa a ser atormentado pelo doce espectro. Quase que incorporado pelo fantasma, McCoy começa a criar uma arte que lida com o violento inconsciente coletivo que assombra a persona de Candyman e o bairro que o casal vive, o Cabrini-Green de 2019. Diferente da colmeia de operários do conjunto habitacional de décadas atrás, o bairro agora vive um processo de gentrificação, sendo habitado por jovens, principalmente artistas aspirantes que buscam uma moradia acessível e de qualidade. Mesmo com as mudanças sociais na região, o bairro parece ainda abrigar os indesejados da sociedade: sejam eles novos artistas ou jovens negros, ou mesmo, ainda, os dois.
Diferente da personagem whitesavior de Lyle, que de certa forma explora o sofrimento negro em mérito próprio, McCoy, o novo protagonista é o reflexo da opressão que historicamente os seus semelhantes vivem. Conta a história que a origem da assombração está em Daniel Robitaille, pintor filho de escravizados que se apaixona pela filha de um fazendeiro branco. Descobrindo o amor proibido em tempos de jim crow, os supremacistas brancos decepam a mão do artista, o cobrem de mel e o torturam com abelhas, o incendiam e terminam enfim com seu sofrimento. Daí vem o tema recorrente das abelhas. Ironicamente, na versão contemporânea, McCoy só começa a despontar no mercado da arte — diga-se, receber a aprovação dos brancos — quando sua obra inspirada em Candyman começa a ser notada pelos brutais assassinatos, que coincidência ou não, tem sempre relação com figuras importantes desse ambiente. Apesar da vertiginosa decadência de McCoy pela influência de Candyman, em certos momentos do filme chegamos até a torcer pela assombração, sobretudo no impactante desfecho do filme.
Candyman é um anti-herói — ou talvez um anti-vilão — que vem consolidar de vez narrativas negras de qualidade no terror como filme de gênero e de autor na indústria cinematográfica estadunidense, que desde os blaxploitation, como o clássico Ganja & Hess (1973), vem tentando ardorosamente conquistar público e crítica. Atualmente, além dos sucessos de Jordan Peele, temos uma série de filmes e seriados assinados por autores negros que vem alcançando reconhecimento tendo o terror como inspiração central, mas mergulhando suas narrativas em críticas sociais, como em Lovecraft country (2020), His house (2020), Them (2021), Black box (2020) dentre outros. O terror negro veio pra assustar e incomodar de vez, doa a quem doer.
Eu sou a escrita na parede.
O cheiro doce de sangue.
Seja minha vítima.
Diga meu nome.