Carnaval 2020, pandemia e Covid-19: morte, destruição, irresponsabilidade e o pedido à luta
Confesso que esperava falar sobre o saldo do carnaval 2020 para a cultura carioca na coluna de agora: o resgate da tópica afroameríndia via proposta de enredos e sambas de enredo apologéticos a figuras/trajetórias negras (de mulheres e homens) e igualmente emergentes da produção acadêmica/científica de instituições públicas (universitárias) de ensino — as ganhadeiras de Itapuã (Unidos do Viradouro) foram elaboração de tese de doutoramento em Etnografia musical da agora doutora Harue Tanaka (“Canto das lavadeiras”, UFPB) -; a conseguinte reaproximação das escolas de samba da base material, simbólico-histórica e holística africana/originária por este intermédio — razão ou não da crise de financiamento patrocinada pelo executivo municipal, não importa -; da valorização de novos nomes como efabuladores da folia na Sapucaí — ainda carente de idealizadores negres, à exceção de João Vitor Araújo no GRES Paraíso do Tuiuti -, como Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon (Unidos do Viradouro), casal LBTGQIA+, Gabriel Haddad e Leonardo Bora (Acadêmicos do Grande Rio), oriundos da universidade e autores de “Tata Londirá: o canto do caboclo no quilombo de Caxias”, sobre o babalorixá Joãozinho da Gomeia (1914–1971), personalidade obscurecida como intelectual negro, gay e de axé; da resistência da festa de rua ante o evidente boicote, novamente, da prefeitura de Marcelo Crivella e da reinvenção da vida ante o exuzilhamento momesco, como muito melhor elucida Luiz Antônio Simas. A emoção da passagem de Benjamim de Oliveira (1870–1954), ator, palhaço, poeta, dramaturgo, cantor e compositor negro, artífice da modernidade carioca belle époquista, Elza Soares em sua glória de reinício de mundo, Tata Londirá e o discurso antirracista religioso, o Jesus negro de Mangueira e de Exu pela passarela do samba tomaram-me tanto tempo quanto pesquisa e inspiração, esta última motivada por Flávia Oliveira e sua ode à deusa da Vila Vintém na coluna da sexta pré-Momo em O Globo (21 de fevereiro), na escrita imaginada de um relato que minimamente recordasse outro grande momento do Rio de Janeiro ante as calamidades local e nacional das atuais gestões do poder público. Não fui desmobilizada a fazê-lo, e creio tê-lo realizado acima de forma sintética. Neste lapso, entretanto, uma pandemia entrou em curso e, com ela, uma histeria coletiva. Entre a histeria, a irresponsabilidade: o aporte financeiro anunciado da esfera federal segue aquém do socorro necessário a trabalhadores celetistas e informais, autônomes, profissionais liberais, classe artística, microempresariado e população preta, pobre e periferizada/favelizada lesades ante a retração econômica e desigualdades socioetnicorraciais recrudescidas em períodos de grave crise/afrouxado cordão de ações e políticas públicas sociais pela orientação ideológica ultraliberal; o negacionismo fascista da presidência da República, infensa às notícias de espraiamento global do Covid-19 e seu elevado poder de transmissibilidade, menoscabando-as enquanto fantasias, gripes inócuas e, depois, às recomendações técnicas de seu próprio Ministério da Saúde por isolamento social e recolhimento pós-teste da doença, convocando apoiadores/as e asseclas a manifestações antidemocráticas — crime de responsabilidade per se, porque atentatórias ao regime — expondo-os/as e expondo-se ao contágio em cumprimentos calorosos e selfies, cujo misto de ignorância, fraqueza, covardia, crueldade, dogmatismo e pulsão necropolítica criminosamente promoverá um holocausto em massa inominável, tal qual Conte tem patrocinado em Itália, Johnson está próximo de provocar no Reino Unido e França, Portugal e Espanha tentam salvaguardar-se após desastres localizados.
A décima maior economia do globo — sim, o Brasil o é — prepara-se para remediar maiores danos, leia-se índices alarmantes de infectades e mortes, ante políticas reiteradas de sucateamento de seu sistema público de saúde por falta de leitos, insumos hospitalares, medicamentos básicos, plano definido de salários e carreira e profissionais desmotivades, quando não insuficientes em quadro, e problemas históricos estruturais — sobretudo a pobreza. A décima economia do globo conta com a vacância no poder de uma liderança capacitada na coordenação logística/estratégica e humana de esforços de mitigação dos efeitos da agora declarada pandemia, uma vez ocupada por um garoto branco mimado com sérios problemas de espelho — a psicologia deve explicar. Criolo explica -. A décima economia do globo não se pensa coletiva, por aquela condução ou não, e mal informada, ou supererroneamente informada pelos órgãos de imprensa, ignora riscos e letalidade do agente patogênico novo vilão da humanidade ocidental. A conjunção não-aleatória dos fatores elencados acima deveria propiciar alguma coisa, qualquer coisa distante da distopia verificada. Deveria, mas nada parece óbvio ou perfeito em se tratando da pátria-amada-Brasil acima-de-tudo-Deus-acima-de-todos-Brasil, se um dia assim se constituiu — o sangue retinto pisado da terra é fruto genético de estupro e espólio de saque colonial.
Eu, falando de um lugar de privilégio da décima economia do globo, não consigo sequer concluir a presente coluna por falta de cognição ou coragem em fazê-lo, tamanha impotência e incredulidade/espanto — antes unicamente motivado pelo caráter de destruição do novo coronavírus -. Eu, inundada de informação e só não entregue ao pânico por algum preparo de ordem mental/psíquica/emocional acumulado através da psicoterapia, mas frágil e já à beira de ser violado, não muito consigo realizar, a não ser compartilhar novas informações — desejando não atrapalhar/instilar mais temor — e apelos de amigues pequenes produtores pela manutenção da compra e venda de fabricações próprias. Eu, de algum lugar de privilégio da décima economia do globo, espero encontrar melhores condições para falar de arte e cultura críticas que não com culpa. Eu, deste lugar de privilégio, embora em casa pela sensibilidade de uma chefia imediata e não da empresa contratante, desejo reencontrar amigues querides/compatriotas, mulheres e alguns homens, bem e saudáveis em um abraço digno do meu amor e todo afeto. Eu só quero que sobrevivamos e reconstruamos a nação — de preferência extirpando o autoritarismo fascista e seu tentáculo racimisógino, patriarcal, capitalista e cis-heteronormativo especista sob o devido processo legal -. Eu só quero poder confiar nas pessoas de novo, exceto em quem queira e sempre quis me matar — como mulher e lésbica -. Eu, do meu lugar, quero continuar desejando. Quero continuar sendo. Quero continuar acreditando. E realizando. E imaginando. E sonhando. E caminhando. E existindo.
Não nos esqueçamos. Vai passar. Nós voltaremos. Nada será em vão.
Vamos à luta!