CARTA À NOVA DÉCADA

Coletivo Pretaria
4 min readJan 4, 2021

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Cara década nova,

Antes de tudo, não repare a bagunça. Estamos em obras. E também não se acanhe. Eu sei que a relação consigo, geralmente, é mais sobre a expectativa com os seus filhos. Falamos feliz ano novo aqui, feliz ano novo ali e acabamos nos esquecendo quem é que abriga esses novos ciclos de 365 dias.

Também não estranhe a formalidade de lhe escrever uma carta. É que, como teremos uma nova década de 20, eu quis soar meio vintage mesmo — e cá para nós: nada a ver me dirigir pela primeira vez à nova década por uma thread de Twitter. E eu não sou o único. O escritor angolano José Eduardo Agualusa, por exemplo, fez uma carta se dirigindo a este seu ano primogênito que adentramos há pouco. Já a jornalista-referência Flávia Oliveira fez uma muito emocionante se dirigindo ao seu neto primogênito. Essa formalidade que a carta evoca reforça o status e a urgência deste gênero textual, e urgência é um assunto caro, bem caro, por aqui.

Por isso, lembremos que, de acordo com a ONU, ainda estamos na Década Internacional dos Afrodescendentes e estaremos até 2024. E vamos revisitar alguns pontos dela:

I. Reforçar a ação e a cooperação nacional, regional e internacional para garantir o pleno gozo dos direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos dos afrodescendentes, e sua participação plena e igual em todos os âmbitos da sociedade;

II. Promover maior conhecimento e respeito à diversidade da herança e cultura dos afrodescendentes e de sua contribuição ao desenvolvimento das sociedades;

III. Adotar e fortalecer os marcos jurídicos nacionais, regionais e internacionais, de acordo com a Declaração e Programa de Ação de Durban e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, e assegurar a sua plena e efetiva implementação.

Até aqui, vimos que o vilipêndio às vidas negras prossegue em curso, com 2020 sendo um ponto inflamável em diversos aspectos. Nunca se discutiu tanto o racismo nas redes e também nunca se houve, ao mesmo tempo, tanta resistência ao assunto. Esse excesso de informações sobre o mesmo tema também corre o risco de que, ironicamente, percamos o foco principal sobre ele e que o assunto se imploda de vez. Por isso, gostaria de lembrar-lhe mais uma vez: de acordo com a ONU, ainda estamos na Década Internacional dos Afrodescendentes e estaremos até 2024. Não percamos o foco.

Após 10 meses do início da pandemia no país, o Brasil chegou até você observando o seu entorno sendo vacinado antes dele. O país com mais negros do mundo fora a Nigéria resolveu dar de ombros para a doença que afeta mais, justamente, mais da metade da sua população — preta e parda. Por isso, vale reforçar de novo, de novo e de novo: ainda estamos na Década Internacional dos Afrodescendentes e estaremos até 2024.

Mas vamos manter o foco também nas coisas boas. Os Estados Unidos, por exemplo, se livraram do agente laranja e garantiram uma mulher negra na vice-presidência. No Brasil, 13 mulheres negras e três mulheres transexuais estão entre as dez candidaturas mais votadas. Além disso, uma geração de artistas pretos está se conectando e trocando ideias entre si, com seu público e com os intelectuais pretos de nosso tempo de uma forma que está sendo muito bonita de se ver. Até mesmo as divergências que estão eclodindo entre os grupos está sendo algo especial de se acompanhar, já que, se há divergências, é porque há pluralidade de pensamento. Por isso é que, apesar de, canonicamente, estarmos estreando uma nova década, mais uma vez eu reforço: estamos na Década Internacional dos Afrodescendentes e estaremos até 2024.

Tudo isso para que possamos aproveitar melhor você, nova década de 20, e todas as outras que virão. Seja gentil.

Da testemunha ocular das décadas passadas desde a de 1980,

Gilberto Porcidonio

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