CASA GRANDE E CASERNA

Coletivo Pretaria
4 min readSep 10, 2021

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Marcha, soldado

cabeça de papel

se não marchar direito

vai preso pro quartel

O quartel pegou fogo

a polícia deu sinal

acode, acode, acode

a bandeira nacional

Essa música, superficialmente pueril, que cantávamos na escola, é o resumo perfeito do Brasil. O quartel pega fogo, aparentemente, por causa de algum soldado puto por estar preso após não ter marchado direito. No acode-acode-acode que se segue, qual é a preocupação geral? Salvar a tropa? Proteger o arsenal para que tudo não exploda? Não. Salvar a bandeira nacional. E assim o país segue, dando mais importância às coisas do que às pessoas. “Marcha, soldado” mostra para a gente que o “Brasil acima de tudo” que, hoje, anda hypado ao ponto do desgaste, já estava esfregado na nossa cara desde a tenra infância.

O feriado desta semana foi o dia em que a galera que veste a bandeira nacional (já falei que é crime?) aproveitou para dar o ar da desgraça, pois tentaram transformar o 7 de Setembro no nosso 11 de Setembro. No sentido chileno. E o sentido foi o mesmo da música infantil: acudam a bandeira nacional enquanto as pessoas queimam, seja de fome ou covid. E nisso vale fogo amigo e até contra si mesmo, porque, se a gente pegar qualquer golpista de baixa patente desses e analisar bem a fundo, pode escutar uma vozinha bem fraquinha falando: “Fora eu! Fora eu!”. Na Avenida Paulista, aquele falo inflável verde e amarelo, que, dizem, foi instalado (epa) por estudantes trolladores, denotava muito bem o que todos ali estavam fazendo: defendendo santos do pau oco.

Mas o que vale análise mesmo por aqui é o pedido que tem sido feito desde que o verde e o amarelo voltaram a aparecer nas ruas fora da Copa e dos caras-pintadas. As pessoas, mais uma vez, pediram por intervenção militar. Por limpeza. Por braço forte e mão amiga. Em meio ao fetiche coturnal, fica a questão: quantos dali serviram, de fato, às Forças Armadas? Quantas prestaram o serviço obrigatório?

Para permear essa questão e, como racializar é racionalizar, precisamos olhar a cor de quem veste a farda Brasil afora. Qual é o corpo que forma a maioria das corporações e que raramente passa para as patentes superiores? E a quem é que essa massa branca de verde e amarelo pede para “limpar” a nação sempre que lhe dá na telha?

Com tanta clivagem racial dentro e fora das casernas, não é de se estranhar que as tropas sejam usadas, até hoje, para fazer o “serviço sujo” no qual sinhás e sinhôs modernos não querem meter as mãos. No fim, assim como o lanceiros negros traídos durante o Massacre de Porongos em plena Revolução Farroupilha, todos são deixados de lado sem armas, vida ou liberdade. Nessa ordem.

Sem a força de trabalho negra, inclusive, nas Forças Armadas — e isso independentemente dos que portam fuzis ou baldes de cal — o país para. O militarismo é um exemplo perfeito de como funciona essa dependência da mão de obra melaninada que tanto assusta quem, do alto, se vê cercado por negros por todos os lados no segundo país com mais pessoas negras no mundo. A única forma de fazer com que esse medo cesse, pelo menos, um pouco, é pedir para essa “tropa” lute a seu favor. Mas o pedido é feito àquelas com quem essas mesmas pessoas se identificam: os superiores brancos.

Os dias seguintes de uma tentativa explícita de golpe costumam escorrer como uma grande ressaca, e a gente sabe muito bem que as ressacas costumam ficar cada vez piores quando ficamos mais velhos. Por isso, já com mais de 500 anos, o Brasil já deveria estar grandinho o suficiente para saber, primeiramente, que não dá para ganhar as coisas no grito, ao contrário do que diz a mitologia do 7 de Setembro. Além disso, a Abolição de 1888 também deveria valer para as Forças Armadas, mesmo que já tenhamos um João Cândido na história para mostrar que não foi bem assim. Exército não deveria ser bucha de canhão, e a bandeira nacional, mais importante do que quem porta as verdadeiras cores nacionais. Enquanto isso, quem se julga acima de tudo segue tremulando, de forma ressignificada, as cores nacionais: o verde da fome e o amarelo da covardia.

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