Cinema, diversidade e expectativas dos Oscars 2021: porque a vida precisa recomeçar
O artigo necessário a ser escrito para a edição de número 93 dos Oscars já o foi. Alê Garcia comentou no blog Quadro Negro, da Folha de S.Paulo sobre o cinema negro no Academy Awards 2021 e, apesar do reconhecível (maior) índice de atorus e produções negras indicadas às notórias categorias (6), o registro ainda é inferior ao de 2016 (7). O total de 28 nomeações refere, sim, a premiação mais diversa da história, consequência da preta mobilização pela visibilidade de suas narrativas e produtos culturais, além daquelas/es de mulheres, asiátiques, latines, trans e travestis e, agora, finalmente, de pessoas com deficiência. Contudo, e retorno a Garcia, interessante será ver normalizados a presença, histórias, conhecimentos e (históricos) fazeres de cegades em corpos, ou corpas, cores, afetos e capacidade arredios à branca supremacia masculina nas telas do mundo — repito Mia Neil, vencedora do Oscar de Melhor Cabelo e Maquiagem por Ma Rainey’s Black Bottom (Netflix, 2020), primeira mulher negra, junto a Jamika Wilson, a ser premiada. Interessante, justo e reparatório.
Enquanto celebramos as 4 indicações de Viola Davis à Melhor Atriz, feito primaz alcançado por uma atriz negra, ou a segunda vez que, desde 1975, duas contrapartes concorrem ao mesmo prêmio — Andra Day, em The United States vs. Billie Holiday (Hulu, 2020), e Davis em Ma Rainey’s, ou as vitórias de Chloé Zhao como a primeira pessoa asiática (de ascendência chinesa) e segunda mulher a vencer o Oscar de Melhor Direção e Filme, e a de Yuh-Jung Youn, enquanto coreana, na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante — Meryl Streep concentra sozinha 21 nomeações — algumas memoráveis, outras, nem tanto. Chave mudada, corpo de júri também (literalmente) modificado e mais atento. Ou medroso. De todo modo, e o disse acima, este texto redigido está. Daqui em diante, escolho, porém, destacar algumas das belezas desnudadas no telão (dos lares) e recordados, ou não, no domingo 25 de abril.
Uma exclusão significativa foi a de One night in Miami (ABKCO Films, Snoot Entertainment e Amazon Prime Video, 2020), com sensível, amorosa direção de Regina King. Baseado na peça homônima do roteirista Kemp Powers, o longa traz o pugilista Cassius Clay, ou Muhammad Ali (Eli Goree), o cantor e compositor Sam Cooke (Leslie Odon Jr.), o astro do futebol americano e ator Jim Brown (Aldis Hogde) e o ativista antirracismo muçulmano Malcolm X (Kingsley Ben-Adir) em encontro único na noite de consagração ao título de Clay de campeão mundial dos pesos pesados (25 de fevereiro de 1964). Além das diferenças não sem tensão debatidas acerca da compreensão de si e da construção de suas personas, do ativismo e militância antirracismo, estratégias de resistência e consciencialização ativistas, da liberdade pela e quanto à autonomia de organização da potência criativa ante as exigências da luta e o existir humano, o debate maior diz sobre a união, o amor e o celebrar pretos das próprias vidas. Sinceramente, viver uma noite em Miami com tamanhas referências alentaria melhor que a Bela vingança (Focus Features; Universal Pictures, 2020) desperdiçadora de vida e raiva em um justiçamento vazio, ególatra e insolúvel prometida por Emerald Fennell.
Judas and the Black Messiah (Warner Bros. Pictures, 2020) anima com o brilhantismo de Fred Hampton (1948–1969) — e como poderia ser o futuro se extinguido não fosse, aos 21 anos, por morticínio covarde orquestrado pelo FBI (também algoz da Billie Holiday vivida além de qualquer limite humano por Andra Day em sua estreia na sétima arte) — e a esperança na e com a luta como causa ética de vida. Daniel Kaluuya é Fred Hampton. The Father (Lions Gate; California Filmes, 2020) é a angústia do mergulho na confusão da mente acossada, esvaziada de memórias pela demência, do amor entre pai e filha que sobrevive e se realimenta apesar da perda progressiva de ambos no jogo aí redesenhado de funções e da velhice enquanto estigma na sociedade capitalista contemporânea. Anthony Hopkins (Anthony) e Olivia Colman (Anne) comovem e nos abraçam. Minari (Diamond Films; Galeria Distribuidora, 2020) fala da resiliência de uma família coreana imigrante cujo desafio de viver o sonho americano transforma-se na necessária união para reconstruir a vida em outro lugar a partir do desejo e do amor. Sound of metal (Amazon Studios, 2019) traz um músico (Riz Ahmed) cuja audição perdida leva-o ao encontro de uma comunidade surda e de si mesmo. O documentário Crip camp (Netflix, 2020) aborda o ativismo anticapacista estadunidense em sua trajetória, principais expoentes, força de liderança e inspiração aos movimentos contemporâneos. Aliás, na seara, primorosos também o são Time (Amazon Studios, 2020), estrelando Sibil Fox Richardson na luta de duas décadas pela soltura do companheiro de vida, Robert G. Richardson, então condenado a 60 anos de prisão por assalto armado a banco, e Colectiv (direção de Alexander Nanau, 2020), iluminando o poder do jornalismo investigativo professado criticamente e comprometido com a democracia.
Sobre potências, cito ainda A love song for Latasha (direção de Sophia Nahli Allison; Netflix, 2019), curta biográfico celebrativo da vida, feitos, inspiração e horizonte jamais fenecido do que representara a passagem (entre nós) de Latasha Harlins (1976–1991) — a jovem, negra, fora morta com um tiro na nuca aos 15 anos, porque acusada do roubo de um suco de laranja da loja da coreanoamericana Soon Ja Du (두순자) (1991). Seu assassinato, ocorrido 13 dias após o episódio de brutalidade policial envolvendo o negro ativista Rodney King (1965–2012), agredido covardemente por forças de segurança e cujo registro em vídeo repercutiu no país inteiro, encampou os levantes de 1992, em Los Angeles (CA) –. A animação Soul (Walt Disney Pictures e Pixar Animation Studios, 2020; Walt Disney Studios Motion Pictures) recorda o valor da vida vivida intensamente no propósito de sê-lo, e ser assim compassiva/e/o, com entrega, vontade e sonhos. Escolha-se, e nenhuma instituição determinará o (seu) caminho. O jazzista e professor de música Joe Gardner, iluminado por Jamie Foxx, ensina o viver bem e a revolução protagonizada em fazê-lo (centrar um homem negro na narrativa não é aleatório). Quanto a Ma Rainey’s Black Bottom e The United States vs. Billie Holiday, o sentimento é uma contradição: se ambos vislumbram o brilhantismo e parte do legado de Gertrude “Ma” Rainey (1886–1939) e Lady Day, outro epíteto de Holiday (1915–1969), à música negra e nacional estadunidense nas interpretações magistrais de Viola Davis e Andra Day, o recorte não incidental destas trajetórias em pontos estratégicos (ao ativismo negro) das biografias — a preocupação de Rainey com a perda do controle do processo criativo, de divulgação e alcance da própria obra entre as mudanças do showbiz à época e a apropriação branca, e a perseguição implacável do Feberal Bureau of Narcotics (FBN), o histórico de abusos e agressões sexuais e o vício em heroína de Eleanora Fagan –, por outro lado, desconhecemos os meandros da criação artística, do fazer escrito/de composição, referências no campo, inspirações, ancestralidades e as experiências do viver negritude e mulheridade em suas idiossincrasias destas mulheres. Como sugere Salamishah Tillet em artigo do New York Times traduzido por Celina, de O Globo, precisamos ser capazes de mostrar a genialidade musical de mulheres negras no cinema.
Encerro introspectiva com Quo vadis, Aida?, (direção de Jasmila Žbanić, 2020), produção da Bósnia e Herzegovina com a memória por uma tradutora das forças de paz das Nações Unidas (Jasna Đuričić) do massacre de Srebrenica, produto do holocausto da população masculina de 8.373 habitantes bósnios muçulmanos durante três dias de julho de 1995 da cidade homônima então em plena zona de segurança da ONU, após a tomada pelo general Ratko Mladic (Boris Isaković) no geral avanço das forças sérvias nos Bálcãs. Aida, que teve o marido e dois filhos mortos na invasão, retoma anos depois a vida como professora primária em meio à convivência com amigues, familiares e antigues vizinhes ora tornades inimigues, colaboracionistas do regime de horror, ora iguais vitimizades sem reparação. Guardadas as devidas proporções, o cenário do Brasil pandêmico em 2021 e além guardará desafios e traumas bastante semelhantes, senão catastróficos.
A temporada de premiações chega ao fim e eu, particularmente, decaio um pouco junto. A excitação por cobrir a vista da maior parte dos filmes, vivenciar as histórias, permitir-me inundar por cada uma, ser tocada e reafetá-las com a partilha de algum esforço de escritura viabilizaram-me triunfar por breve momento à guerra da Covid-19 no Brasil. Agora, impotente e de volta à realidade de compatriotas genocidades, tento reunir coragem para, com elas/us/es, sobreviver e honrar sua memória exigindo a responsabilização de executorus e omissorus dos crimes pandêmicos, sem esquecer aqueles impunes da escravidão e da ditadura civil-empresarial-militar de 1964–1985. Após isso, e quem sabe, como em Quo vadis, Aida?, talvez seja possível recomeçar um país.
P.S: falaria mais acerca do curta de animação vencedor, If anything happens I love you (Netflix, 2020), se conseguisse elaborar algo mais distanciado sobre o massacre incel de crianças em escolas por arma de fogo e suas famílias à luz da tragédia ocorrida na cidade de Saudades, Santa Catarina (SC), envolvendo cenário similar (no lugar de revólveres, um facão, três crianças, de 1 ano e 7 meses; 1 ano e 9 meses; e 1 ano e 8 meses), uma professora e uma agente educativa mortas), no exato dia em que redijo este texto (4 de maio). Em meio a uma educação esfacelada no país pela negligência do ministério da Educação e à hecatombe pandêmica, nada, nem o assassinato de estudantes ou educadorus, parece razão mobilizadora para a garantia de direitos, proteção e empoderamento das comunidades escolares.