A multipotências “cantriz”, Verônica Bonfim

“Como diz um provérbio africano, ‘o Sol anda devagar, mas atravessa o mundo inteiro’”

8 min readDec 27, 2021

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Artivista em movimento. Particularmente, sempre gostei desta autoidentificação de Verônica Bonfim, pois, além do compromisso ético-político assegurado, porque coletivo, a fruição própria do processo artístico em si como liberação individual também aparece enquanto trabalho consigo e per se — de novo, político . Uma das sete pretagonistas de “Elza — O musical”, Bonfim é, além de cantriz, compositora, roteirista, dramaturga, doutora em Engenharia Florestal e ser brincante. Múltipla e negra mulher regida por seus orixás, como diria a canção “Nega luxenta” (Verônica Bonfim), Verônica também agrega ao portfólio da carreira a autoria de livros infantis.

Publicado em 2016 pela tradicional Editora Nandyala Livros, “A menina Akili e seu tambor falante” conta a história de Akili, nativa da aldeia Adimó que, em seu aniversário, vê-se convocada à missão de resgatar a história das rainhas de África e sua linhagem feminina junto às contrapartes brasileiras. Para tanto, a preta menina cruza o Atlântico em busca de completar tamanha jornada na companhia do melhor amigo, o tambor falante Aláfia (em iorubá, “caminhos abertos”). Transformada em musical com direção de Rodrigo França, texto, canções, roteiro, dramaturgia e idealização por Verônica Bonfim, a história reposiciona a infância negra qual protagonista deve ser do presente e futuro pretos em sua possibilidade de existir — outro dos atos políticos de Verônica.

Aproveitando o ensejo da primeira temporada em cartaz de “A menina Akili e seu tambor falante — O musical”, conversamos a autora e eu a respeito de literatura infantil, o status da produção artístico-literária nas lutas e movimentos sociais antirracismo à brasileira, os impactos sentidos e a perenizar da Lei 10.639/03 na educação pública do país, os perigos do avanço nacionalista cristão sobre o ensino público e as ameaças do retrocesso racifascista de extrema-direita às conquistas de décadas, séculos de luta racial negra no Brasil. Para além de desafios, debatemos como esperançar com vida os ainda existentes sonhos do país que já fomos e tornaremos a ser.

Sigamos.

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Thainá Campos Seriz: De onde surgiu a inspiração para a escrita de “A menina Akili e seu tambor falante” (Nandyala, 2016. Ilustrações de Luciano Lima) e o que representou, para você, escrever literatura infantil?

Verônica Bonfim: A inspiração veio quando estava brincando com Akili Marjane Moore, neta do escritor, etnólogo e cientista social panafricanista Dr. Carlos Moore. Ela tinha, à época, 2 aninhos, e eu prometi que lhe escreveria um livro. Foi despretensioso, mas hoje eu sei que foi um sopro ancestral.

Tanto o livro quanto o musical que acabamos de estrear vieram preencher essa lacuna no imaginário infantil com relação às muitas contribuições do Continente Africano para a construção da nossa identidade e para a humanidade. Ainda temos pouquíssimas referências literárias negras no universo infantil no Brasil, que ainda lutam por espaço, e poucas editoras que se dedicam à publicação de autories negres em África e na diáspora, comparando com outras editoras. As produções teatrais voltadas para as crianças e suas famílias, com foco em histórias afrorreferenciadas, são raras. Se compararmos com outras produções “importadas”, aí, é um susto, incluindo apoios e a quantidade de aporte e recursos destinados. É uma lacuna de muito tempo, mas que hoje, felizmente, estamos conseguindo avançar um pouco. Quando escrevi o livro que deu origem a este espetáculo e publiquei pela Editora Nandyala Livros, em 2016, não tínhamos a quantidade de autores/as negres que vemos hoje, nem a quantidade de editoras. Como diz um provérbio africano, “o Sol anda devagar, mas atravessa o mundo inteiro”. Estamos chegando!

TCS: Com projeto editorializado e publicado e tendo percorrido escolas com oficinas brincantes e de leitura do volume, como você percebe a implantação da Lei 10.639/03 (11.645/08) nestes espaços e quais desafios ainda enfrentamos quanto à inclusão e obrigatoriedade curriculares do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena nas unidades de ensino do país, ações antirracismo em âmbito escolar e ao debate sobre desigualdades socioeconômicas, de gênero e racismo estruturais?

VB: Percebo que há um longo percurso pela frente no que tange à implementação dessa Lei nas salas de aula, por vários motivos. A meu ver, a mais grave é a falta de políticas públicas efetivas para uma ampla sensibilização, capacitação do corpo docente, adoção de ferramentas metodológicas e inclusão de material pedagógico e didático que comunique de forma efetiva aes alunes. Muites educadories têm capacitação, mas não têm espaço para a prática ou sofrem boicote e até mesmo o risco de perderem o emprego por trazerem esta discussão para a sala de aula. Ainda o que se vê são ações isoladas de professories engajades na luta antirracismo ou interessades em uma pedagogia inclusiva e libertária, mas enquanto for ação isolada, não vai ganhar o alcance que uma luta como esta exige. Estamos falando de séculos de reparação histórica, onde a educação tem um papel primordial no combate a estas desigualdades. E pra complementar, ainda há o agravante de um avanço das religiões neopentecostais em países em desenvolvimento, como o Brasil, com representantes ocupando os três poderes e interferindo no poder do Estado (Laico!). Muitas escolas têm recebido livros bíblicos, orientação para o ensino do evangelho, e há uma “demonização” da cultura africana em toda a sua dimensão, pluralidade e riqueza, o que dificulta em muito a implementação da Lei na prática. O racismo tem vários tentáculos, e este é um dos mais graves.

TCS: À luz do avanço de legislações estaduais de banimento do ensino da escravidão, história e cultura africana e afro-americana e agência negra, hoje, nos EUA, o que podemos esperar do avanço do nacionalismo cristão e supremacista branco da direita religiosa no Brasil sobre a agenda e informação da luta antirracista na educação do país, em especial sob o ministério de Milton Ribeiro e o controle de Sérgio Camargo sobre a Fundação Palmares (hoje afastado)?

VB: Respondi um pouco na pergunta anterior, mas complementando, acredito que o avanço deste retrocesso não ocorre apenas aqui, é orquestrado e manipulado por forças muito severas e poderosas. Fico refletindo, temerosa, sobre uma conversa que tive com Carlos (Prof. Dr. Carlos Moore). Ele, um dia, me falou que a supremacia branca racista, os herdeiros da Ku Klux Klan (KKK) nunca desistiram do seu projeto genocida e nunca descansaram; são células espalhadas pelo mundo todo, ativas. Acredito que este avanço encontra espaço nestes governos de extrema direita, conservadores e autoritários, como este atual, e que precisa de “fantoches” para operacionalizar. É grave quando cooptam os nossos e nossas para servirem a este sistema, os novos capitães do mato servindo à Casa Grande que nem é aqui, no Brasil. Precisamos estar atentes e fortes, pois estamos falando de disputa de narrativas, de perda de privilégios de uma classe que sempre dominou e não vai querer deixar de dominar. Estamos falando de aumento da expectativa de vida da população afrodescendente brasileira (56%), e isso incomoda. Com otimismo, vejo uma juventude articulada e engajada, muito mais consciente do seu papel; a internet e as redes sociais atuando a nosso favor nas denúncias e poder de mobilização instantânea e em massa; pessoas negras e LGBTQIAP+ ocupando as bancadas do congresso, mas ainda é pouco. Precisamos avançar.

TCS: Que efeitos a médio e longo prazo podemos temer com a destruição promovida pelo governo Bolsonaro na educação de base e infantil pública e quanto à penetração ou não da agenda antirracista, pró-diversidade em âmbito escolar?

VB: Eu costumo ser muito otimista, mas o atual cenário nos obriga a ser o mais realista possível para que qualquer possibilidade de luz no fim do túnel seja motivo de festa. Os efeitos são os mais nefastos e danosos na história recente deste país. Foram conquistas de muitos anos, muita luta, sangue e perdas irreparáveis, retrocedemos a um ponto que vai ser difícil recuperar em médio e longo prazo. Acredito que é urgente um esforço coletivo dos chamados ‘partidos de esquerda’ para interromper este avanço da extrema-direita e do seu projeto de destruição do país, um projeto que se consolidou com o agravante da pandemia. A educação é a base de qualquer país que sonha em ser livre e descolonizado, mas a quem interessa isso? Se 56% da população são declaradamente afrodescendentes, esta agenda antirracismo não vai se cumprir, porque ela é justamente o que confronta o projeto de genocídio negro em curso há séculos. A pandemia agrava o que este governo tornou caótico. A ciência, tecnologia e educação do país sofreram um ataque perverso. Cortes no orçamento; falta de investimento em recursos humanos, logísticos e infraestrutura; o ensino remoto não é democrático, nem acessível à população que não tem computador ou internet, ou internet de qualidade; não houve um projeto amplo para capacitação dos docentes para este novo formato… São muitas questões e, mais ainda, os desafios.

TCS: O Brasil fará, em 2022, novo debate sobre a continuidade ou não da Lei de Cotas e outras ações afirmativas — no caso, as cotas raciais — no ingresso ao ensino superior público e em concursos públicos. Ante a possível derrota do atual presidente no pleito de 2022, a imprensa hegemônica brasileira, na figura de seus velhos ideólogos racistas, tecnocratas e pró-supremacia branca, tem investido no revisionismo histórico, especialmente no que toca à relativização dos horrores da escravidão e efeitos do racismo sistêmico continuado na economia política frente à histórica vulnerabilidade socioeconômica da população negra nacional, como forma de mobilizar a opinião pública pela suspensão das cotas na modalidade hoje aplicada — em uma espécie de discurso pós-racial — . Quais estratégias você acha que devemos forjar para resistir ao futuro dos atuais embates na matéria e como quaisquer eventuais decisões contrárias à longevidade da medida podem aprofundar as já atuais ameaças à democracia do país?

VB: Penso que da mesma forma que eles estão se articulando contra uma ação afirmativa desta importância e que, mais que um projeto, é uma das maiores conquistas da população negra no Brasil, é urgente mobilizar coletivos, grupos, intelectuais negres e formadories de opinião, ativistas, influencers e todo o movimento negro para derrubar esta proposta [possíveis tentativas de suspensão das cotas raciais e outras ações afirmativas]. Ainda existe muita falta de conhecimento e informação a respeito da importância das cotas raciais, inclusive dentro da população negra. Isso é também é parte do projeto genocida. Ameaçar a política de cotas que permitiu o acesso de pessoas negras ao ensino superior, no momento em que conseguimos avanços visíveis sobre a efetividade desta ação afirmativa, mas que estamos longe da reparação necessária, é no mínimo cruel. Eu sou parte de menos de 3% des docentes negres com doutorado no Brasil, o país mais negro fora do Continente Africano. E, por fim, comunicação é poder. Nesta disputa ou em qualquer outra sobre nossos direitos fundamentais, precisamos evocar Exu! Usar ao nosso favor a comunicação e a linguagem, sendo estratégicos como foram nossos ancestrais que resistiram e, só por isso, ‘restamos’ aqui! Ocupar em massa e de forma articulada as redes sociais, retornar à base com reuniões comunitárias, nas periferias, nas organizações de base, nos coletivos e grupos religiosos, assentamentos, instituições de ensino, artistas, jornalistas, formadories de opinião, organizações fora do país que possam dar visibilidade ao debate e ampliar nossas vozes.

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ACERVO DE COMUNICAÇÃO DECOLONIAL, INTERSECCIONAL, ANTIRRACISTA, CIDADÃ E COMUNITÁRIA ATUALIZADO POR MEMBRES DO COLETIVO PRETARIA. UM PROJETO DO PRETARIA.ORG