Corpos Pretos em “Espaços Brancos”

Coletivo Pretaria
4 min readNov 30, 2020

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Encerrando o Mês da Consciência Negra no Brasil, a coluna de hoje traz um sentimento misto de tristeza e esperança.

Há menos de duas semanas, houve um incidente devastador, mas extremamente presente na vida de todos nós. Um ato racista que demonstra nitidamente a violação que sofremos por simplesmente sermos.

Me traz uma tristeza muito grande dialogar sobre este incidente porque ele ocorreu na minha universidade. No mesmo complexo de alojamentos em que eu morei durante dois anos sem nenhuma preocupação sobre a minha segurança por eu ser preta.

Durante todo esse período em que eu estive afiliada à Universidade de Manchester, eu nunca senti nada além de afeto, carinho e compaixão. Tanto a universidade quanto a cidade me acolheram de uma maneira tão inteira que palavras nunca irão conseguir descrever. E enquanto escrevo esta coluna do meu quarto, na casa dos meus pais (por conta da crise sanitária global causada pelo coronavírus e a pandemia da COVID-19), eu sinto uma saudade muito grande. Uma nostalgia de algo que ainda não acabou, mas que já parece estar tão distante da minha realidade: aminha vida em Manchester.

Enfim, este não é o foco dessa coluna. O foco é o ato extremamente racista que Zac Adan, um dos estudantes desta mesma instituição que me fez sentir tão acolhida, foi vítima ao voltar para a sua própria residência.

Contextualizando rapidamente: a maioria dos graduandos aqui no Reino Unido saem de casa para realizar os seus estudos. Neste ano, no meio de uma pandemia, as universidades venderam a ideia de que tudo seria como sempre foi: alunos poderiam ingressar em seus estudos e usufruir da ‘experiência universitária’. Seria um modo de ensino híbrido, com componentes presenciais e on-line.

Naturalmente — ou obviamente — , não saiu conforme o previsto. Acabou sendo tudo on-line. E eu fui uma das inúmeras estudantes que caiu nessa ideia. Voltei para Manchester em setembro, passei 3 semanas lá e fui resgatada pela minha família e meu namorado de volta para Nottingham. Antes das coisas piorarem ainda mais; antes da “segunda onda”; antes do segundo lockdown.

Estudantes universitários como um todo vêm sofrendo as consequências de um governo que não se importa com nada além da economia há muito tempo. A saúde mental e o bem-estar de jovens entre 18 e 24 anos nunca esteve tão ruim e muito pouco está sendo feito para retificar essa discrepância.

Mas, como sempre, as pessoas pretas sofrem ainda mais. Este video por si só ja diz horrores.

Um jovem de 19 anos sofre violência física por três homens (brancos), tendo seus direitos violados por quem desempenha a função de protegê-lo — em tese. Um deles sem máscara e nenhum deles respeitando o distanciamento social necessário para nos mantermos seguros durante esta pandemia. A presidente da Universidade de Manchester levou mais de uma semana para entrar em contato com a vítima diante deste ato racista. Ato este que foi bem descrito pelo próprio Zac no video como racial profiling, ou seja, perfilamento racial. Zac teve a coragem e a força de reportar o ocorrido, tendo consciência dos seus direitos e da injustiça que ali estava sendo cometida.

Dialoguei extensivamente sobre este acontecimento com os membros do meu departamento de Filosofia e da escola de Ciências Sociais da Universidade. Todos demonstram empatia, mas falta o reconhecimento de que casos como este são quase que onipresentes em nossas vidas. O racismo é um problema de pessoas brancas, pois foi criado por elas. Mas raramente as mesmas reconhecem a sua responsabilidade de agir para erradicar este sistema que só nos oprime.

O que muitas pessoas não refletem sobre quando assistem ao que aconteceu com o Zac é o legado que ele, como aluno preto em uma instituição prestigiada, carrega. E principalmente: o que eventos como este dizem sobre o lugar de um jovem preto em uma Universidade. Onde quer que ele esteja.

Além de ser um estudante em seu primeiro ano, que acabou de sair de casa, Zac é filho de refugiados da Somália, que vem sendo vítima de um sistema racista e xenofóbico a sua vida toda. Zac é o primeiro da sua família a ingressar em um curso universitário. E por sua vez, assim como muitos de nós, carrega os esforços e sacrifícios de seus ancestrais com todas as suas conquistas.

Tenho consciência de que a situação não é diferente no Brasil, mas achei necessário trazer à reflexão que o mundo como um todo ainda tem muito à aprender sobre os lugares e não-lugares dos corpo preto em espaços em que nós não somos previstos.

Que possamos continuar ocupando estes espaços, tendo a consciência de como o racismo nos atravessa violentamente e nos sufoca, violando nossos direitos, colocando em risco nossas existências.

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