CULTURA DO CHANCELAMENTO

Coletivo Pretaria
5 min readAug 4, 2020

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O ano era 1974, e a cultuada artista sérvia Marina Abramović executou uma de suas performances mais emblemáticas: Rhythm 0. Em uma galeria de Nápoles, na Itália, a artista ficou parada no meio de uma sala enquanto 72 itens ficavam dispostos em uma mesa à sua frente. Quem chegasse lá poderia fazer, sob responsabilidade da própria artista, o que quisesse com ela e com os objetos, que incluíam rosas, tesoura, alimentos, vinho, bisturi, perfume, penas e até uma arma carregada com apenas uma bala. Durante as seis horas, Marina teve as roupas arrancadas, o pescoço cortado, os espinhos das rosas cravados no corpo e até a arma colocada contra o seu pescoço. Depois deste tempo, andou pela galeria junto do público e ninguém teve coragem de fitá-la. Pois bem, muito já se foi falado sobre esta performance, que é o puro suco do comportamento humano, mas vamos utilizá-la como uma alegoria para se falar do assunto mais temido do momento: cultura do cancelamento.

É impressionante como a força dessa performance está na reação do público a algo que ele mesmo fez. Essa galera presente na galeria sabia que, mesmo chancelada pelo “sistema”, isto é, pelas regras da performance, fez coisas que são reprováveis. Agora, a alegoria: vejamos esse público da performance como a branquitude que sempre teve aval para fazer o que quisesse com quem não era branco. Desde que os levantes negros começaram a dizer “não” para essa carta branca (desculpa) de morte e vida assinada pela branquitude em diversos momentos da história, como se estivéssemos inertes, quando passamos a nos mover mais, bateu um horror nesses brancos que pode ser resumido com apenas uma frase: “eles virão aqui para se vingar de nós”. Esse é um desespero que tira a branquitude de seu sono desde o trauma causado pela Revolução Haitiana, que, conforme o pintor January Suchodolski registrou no quadro “Batalha em San Domingo”, teve toda a sua sublime importância de ser o único país das Américas a ter um levante negro que resultou em sua independência reduzida ao horror de um negro exibindo uma cabeça branca como um troféu de batalha. Por isso, a visão que se tinha sobre esse regime mundo afora, além das questões econômicas, passou a mudar, para que outras revoluções parecidas não ocorressem. Assim, a branquitude, ao se descobrir como minoria populacional dos lugares que dominava, abraçou um pânico irracional que, como herança, segue até hoje: ser cancelada.

O cancelado tem cor

Em 1975, um ano após esta performance de Abramović, Simonal lançava seu álbum “Ninguém proíbe o amor”, que, apesar de cult hoje em dia, passou batido na época. Foi um lançamento que, até mesmo na capa, mostrava um artista muito diferente do que reinou nos anos 60, pois ele já tinha sido colocado à parte da cultura brasileira e da convivência em sociedade, enquanto artistas que fizeram o mesmo que ele foi acusado de fazer — ser um informante da ditadura — seguiram incólumes com as suas carreiras. A morte em vida de Simonal, que transparece na tristeza desse disco, principalmente na faixa de abertura, “Escola em luto”, provou que a tal temida cultura do cancelamento existe há muito mais tempo do que se imagina e, quando quer, funciona de fato. Porém, não para brancos. Salto histórico e outros cancelamentos mil, temos recentemente o caso do economista Carlos Decotelli, o ministro da educação, que saiu do cargo antes mesmo de ter entrado por causa de irregularidades em seu currículo. As mesmas irregularidades que outros ministros brancos possuem e que não lhes custaram cargo algum. Pelo contrário. E lógico que o certo é o certo sempre, porém, nesta distopia curricular que tomou o governo brasileiro de assalto, o único que não pode ter pecados nesse quesito é o preto.

A sensação que eu tenho é que, antes do caso George Floyd, a branquitude vivia férias contestativas. Tudo o que falavam, se não era aceito, pelo menos passava sem veto, freio ou “olha só” algum. Afinal, passar a mão na cabeça de branco — às vezes, literalmente, já que crianças brancas recebem mais carinho que as negras — é uma tradição nacional, e isso vem de casa. Enquanto a criança branca faz um rabisco numa folha e a mãe já chama de gênio e prende o desenho na geladeira, a mãe preta ensina ao seu filho que ele não vai a lugar nenhum se continuar tirando 7 em vez de 10 na prova, já que os pretos precisam ser excepcionais para disputar as mesmas oportunidades com brancos medianos. O mundo pós-George Floyd só está retirando os medíocres e as mediocridades do armário.

Em sua coluna de estreia na Vogue, a escritora Carla Akotirene citou uma pesquisa sobre ataques nas redes sociais brasileiras feita pelo PHD em sociologia Luiz Valério Trindade. No trabalho, ele percebeu que há, nesses ataques diários, a prevalência do ódio racial praticados por homens na faixa de 20 e 25 anos contra 81% das suas vítimas: mulheres negras que estejam em evidência no momento. Esse estudo prova que, se a tal cultura do cancelamento, de fato, existe como tanto se alardeia, ela é branca, demasiadamente branca.

Deixarei aqui outros exemplos de quando a cultura do cancelamento funcionou, de fato, no Brasil recente: Massacre da Candelária, Chacina de Acari, Massacre de Eldorado do Carajás, Massacre do Carandiru, Chacina de Vigário Geral, Chacina de Costa Barros. O resto é gente branca surtando porque está sendo chamada para arcar com as responsabilidades daquilo que fez, falou ou escreveu em algum momento da vida em que algum absurdo passou incólume de crítica. Gente que, depois da exposição momentânea, segue com o CPF, o direito de ir e vir, a conta bancária e os likes em dia, independentemente do que fale ou deixe de falar. Gente que, quando percebe que nós começamos a nos mexer no mesmo recinto em que estamos sendo constantemente violados, sai do mesmo envergonhada e ainda se faz de vítima. Gente chancelada.

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