Das contradições entre negação, realpolitik e esperança: EUA, Kamala Harris e o futuro

Coletivo Pretaria
6 min readFeb 15, 2021

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Esta não é uma coluna (tardia) sobre a invasão ao Capitólio estadunidense aos seis dias do passado janeiro deste 2021, mas acabará sendo reflexo e reflexão de possíveis futuros — de desejados ou temidos. O episódio é pretexto para a exposição de um problema compartilhado às histórias da formação racial-cultural do país norte-americano e o presente brasílico: autoimagem. O caráter branco, nacional-nilista e heterocisnormativo da insurreição inflamada por Donald J. Trump e asseclas parlamentares republicanes é veio aberto e sustentáculo histórico da democracia liberal à americana, cujas parcas conquistas — ou promessas — de liberdades e garantias individual-coletivas devem-se às lutas e resistências, plataforma e organização política secular dos segmentos negro, indígena, latino, sul-pacífico-asiático e outras denominações etnorraciais, mulheris ou não, em torno da consolidação e prática de uma agenda comum e programática constitucionalista de direitos humanos e civis — e não dos brancos pais fundadores da República.

Imagem: GETTY/The Atlantic

O descrito acima é panorama conhecido, que a jornalista Nikole Hannah-Jones expõe nas linhas do Projeto 1619 (o ensaio “As raízes negras da liberdade”, continente do 1619 Project e introdutório a esta série premiada de reportagens, pode ser encontrado na edição de número 34 da revista serrote em hiperlink). A discrepância de imaginário já aí registrada, e tenazmente não reconhecida, corresponde em verdade ao espelho imperfeito mirado, denegado da branquidade (masculina e feminina) em torno de aspirações, desejos e eventuais anseios de manifesta, porque autoatribuída, vocação moral à superioridade, uma vez bastião e guia intelectuais do progresso, desenvolvimento, livre trato, alegria e prosperidade dos povos — domésticos e do globo. Fanon (1925–1961) explica.

Da paranoia arrogada, a ausência. Ou excesso carente. Falta. A eupositivação negativadora de subjetividades dissidentes à imagem, cor, corpo, afetos únicos, os seus, desinforma de sentidos, distorções e complexidades experiências outras, e possíveis, a primeira humanidade — e às demais coexistentes. A perfeição perseguida, nunca claudicante, implacável e ascética não admite a oportunidade do autoconhecimento constante, do trabalho de si (Foucault, 2004) enquanto indivíduo social e da mudança como instrumento de transformação da realidade habitante do mundo, habitada e habitável em seu interior. A raiva não organizada das frustrações sem dúvida decorridas de tão numerosas, múltiplas e mal executadas tarefas, pouco ou nada recíprocas, alienantes, eucentradas, ignorantes e confusas em emissão e recepção cria penalizações próprias — a dificuldade de relacionamentos intra e interpessoais — e a outres — abusos, violência, dominação e extermínios físico, simbólico e epistêmico –.

Se a nova investida do racifascismo homonacionalista branco recém-observada nos EUA trumpista e/ou desde 2015/6 na comunidade internacional também diz da psicanálise necessária ao fazer e elaborar sociológicos, embora não psicologizem superestruturas — e não devem –, a negação do sistema racial e racialista de gênero e classe edificador dos Estados-nação de matriz liberal-burguesa nascida nos Setecentos (século XVIII), Oitocentos (século XIX) ou Novecentos (século XX) por moderades e proclamades defensorus da “normalidade democrática” preocupa ainda mais. A sedição verificada diria apenas, segundo elus, do arroubo autoritário de inconformades com uma derrota eleitoral, e não do ethos e habitus estilizados do ser político branco. As demonstrações brancas do necroterror de Estado às expressões negras, indígenas, latinas, asiáticas, pacíficas e muçulmanas envernizadas de lei e ordem, nacional — a brutalidade policial nos protestos Black Lives Matter pelo assassinato de George Floyd e a observação apática, contemplativa das forças de segurança à turba brancalizada de um erroneamente aventado tribalismo masculino são excelentes demonstrativos — e internacionalmente seriam, então, parte do exercício democrático. A persistir a negativa intencional e/ou inconsciente, qualquer rearranjo, promessa de superação, justiça restaurativa/equitativa ou reparação estarão fadados ao fracasso, senão recrudescimento das desigualdades. E há quem, ancestral e secularmente, erga-se cansade em refazer-se a si e ês sues de escombros no restabelecimento intermitente da vida possível em meio à sujidade material e metafórica de uma (branco)democracia deformada.

Do cenário de caos, feridas narcísicas e cicatrizes ainda abertas, entretanto, algum alento. Contraditoriamente ou não, de igual contexto. Sentir na pele, e nos olhos, o sopro da brisa aventada ao Norte americano — sim, em todas as ambivalências sabidas, já escrutinadas, cotejadas e sopesadas — com a posse de Kamala Harris, primeira mulher, pessoa negra e de ascendência indiana à vice-presidência do país, aliás cargo/função de papel-chave na configuração político-institucional, dado o duplo caráter executivo e legislativo de sua atuação, é reaprender a esperançar-se, e sem alienações, com o fazer e elevação das lutas antirracismo, de gênero e classe à composição dos quadros de poder, seja em promessa — obviamente cobrável e a pressionar — ou intenção — sua trajetória e reverência à ancestralidade (o vídeo hiperlinkado faz belíssima saudação a algumas das inspirações e referências da caminhada de Harris) em si já dão conta da vontade em executá-la, a despeito de patriarcalismos racistas e antirracistas, outra categoria de detratorus e contradições (e mesmo algumas admitem interpretações diversas. Faço novo convite à leitura dos artigos “Public defender: I worked with Kamala Harris. She was the most progressive DA in California”; “Campaign fact check: Here’s how Kamala Harris really prosecuted marijuana cases” e “Kamala Harris and the noble path of the prosecutor”).

Imagem: reprodução/Twitter

A escolha de Harris como companheira da/na corrida presidencial democrata, sem dúvida catalisada entre os levantes pretos antibrutalidade policial e contra o assassinato por asfixia de George Floyd (44) articulados via movimento Vidas Negras Importam (Black Lives Matter) em território nacional, sinalizam senão o real desejo, a compreensão minimamente estratégica da reconciliação e reparação históricas das brutais assimetrias desencadeadas pela economia material, subjetiva, epistêmica e simbólica de afetos, violência e abusos racial-escravistas das relações interpessoais, entre e intragrupos societais enquanto necessárias à consolidação, justiça e paz democráticas, supressão e superação do nacionalismo racifascista branco à la Secessão (1861–1865) e/ou Jim Crow e legado trumpistas — a observar/encaminhar/cobrar –. A dupla diversa de raça, gênero e idade agora irmanada e alçada ao topo da cadeia de poder do país sob o compromisso de reconstrução, observação e manejo respeitoso das diferenças socioetnicorracais e gênero-classistas ante a polarização política e o ódio podem, e devem, fazer ventar sobre o Brasil alguma inspiração e horizonte às lutas de resistência antiopressões, pela manutenção do Estado Democrático de Direito preconizado nas letras do pacto de 1988 e de realização final da democracia às maiorias sociais minorizadas deste território da diáspora africana, e de pertencimento indígena, no mundo.

A primeira, mas não a última. Dos tantos simbolismos e representatividades, a renovada lição: sonhar com ambição, liderar com convicção — e ao espectro de alianças relevantes, acordadas no e pelo respeito às diferenças (Audre Lorde) — e ver a si de forma única, porque autodefinida, segura e confiante, nunca antes vista. Ou mostrada. Sim, iremos aplaudi-las(es), aplaudirmo-nos e reerguermo-nos a cada passo do caminho, fenomenais mulheres, pessoas que somos.

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