Solano Trindade

“Devolver ao povo em forma de arte”

Coletivo Pretaria
4 min readNov 4, 2019

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Chegou o mês onde todo mundo quer falar da gente. Estamos na época do ano em que tudo nosso é bom, bonito e tem valor… Aqui, no Brasellll, quando novembro chega até parece mesmo que a gente é o dono de tudo que está posto e que em tudo que se vê tem nosso sangue; o nosso e o dos indígenas. Até parece!

Lois Mailou Jones, “Ode to Kinshasa,” 1972, mixed media on canvas, 48 x 36 in.

Duvida? Atente o olhar e depois me diga se nesse mês você não viu mais preto na programação televisiva (programas, filmes, séries etc), nas propagandas, nas produções artísticas e nas matérias de jornais. Novembro é o mês de se lembrarem que não estamos aqui só para morrer!

De tudo isso só tem um detalhe, uma coisa que está acontecendo e que não tem a ver com todo mundo e sim com a nossa gente, preta, com o nosso povo, negro. Para e repara na quantidade de produções idealizadas e realizadas por nós, negros, negras, negrxs! É como se a gente tivesse tomando os espaços, ocupando, invadindo mesmo! E isso é bonito de se ver. Bonito, não! Lindo!

Multidão assiste ao pronunciamento de Angela Davis (Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo)

Em outubro de 2019 o tradicional Cine Odeon foi invadido pelo Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul (12ª edição), cuja abertura contou com ninguém menos que Angela Davis. Foi preciso um telão na Cinelândia para dar conta da audiência, massivamente negra, que se prostrou ali por horas para ouvir uma de nossas griots mais significativas. O evento exibiu mais de 140 filmes dirigidos por negros e negras, um feito sem igual no Brasil! No domingo ensolarado de 03 de novembro, passando pelo SESC da Barão de Mesquita Rio (Tijuca | Rio de Janeiro) observei com alegre surpresa o outdoor com a programação cultural de novembro. Só espetáculo de temática negra. Não me lembro de ter visto isso antes. Principalmente em um bairro claramente racista, como é o caso da Tijuca. Também pudera, nem suburbanos os caras se autodeclaram. Podem rir!

Foto: Aída Barros

Pois bem, uma das atrações da programação cultural negra do Sesc da Tijuca é a peça Negra Palavra, Solano Trindade apresentada pelo Coletivo Preto e Companhia de Teatro Íntimo. A peça se baseia nos poemas de Francisco Solano Trindade, negro, pernambucano, artista, ator, poeta, teatrólogo, pintor, militante do Movimento Negro. De uma importância sem igual para a poesia e o teatro negros no Brasil. Quantas rubricas deveria ele, Solano, ter para ser tão reconhecido quanto Clarice Lispector (passou a infância em Recife) e João Cabral de Melo Neto? Aliás, você conhece Solano Trindade? Se até hoje não sabia ser Solano, te convido a mergulhar no mar de amor e chamamento à luta pela liberdade desse poeta e te desafio a ser o (a) mesmo (a) de antes.

Negra Palavra-Solano Trindade (Foto: Thiago Sacramento)

Trecho do poema “SOU NEGRO”

“Na minh’ alma ficou/O samba, o batuque, o bamboleio/ E o desejo de libertação”.

“FDP”

Amor
um dia farei um poema
como tu queres
dicionário ao lado
um livro de vocabulário
um tratado de métrica
um tratado de rimas
terei todo o cuidado
com os meus versos.

Não falarei de negros
de revolução
de nada
que fale do povo.
Serei totalmente apolítico
no versejar…
Falarei contritamente de Deus
do presidente da República
como poderes absolutos do homem.

Neste dia amor
serei um grande filho da puta.”

Ilustração: Valdo Virgo

Novembro está aí e com ele todas as possibilidades de diálogo, criação e escuta sobre a nossa negritude. Vamos nos apoderar da temática, que, de fato, é nossa e “envenenar” ouvidos e mentes sobre a essa existência preta. Ocupar também é uma forma de luta! Prestigiemos as atividades com nossa presença. Pensemos em como contribuir com nossas ideias e ações para novembros tão negros, mas tão negros que, um mês não dará conta de toda nossa pretitude!

Haverá o dia em que a palavra consciência será substituída por realidade e o mês terá de abrir espaço para o calendário todo porque tudo que existe é nosso por direito.

Para eles um novembro de oportunismo, para nós, negros e negras, um mês e luta, de consciência, de celebração com quem está vivo e de louvação aos que já foram.

Solano Trindade (Ilustração: Karina Freitas | http://www.suplementopernambuco.com.br/images/pdf/PE_154_web.pdf)

Parafraseando Solano, devolvamos o sangue derramado e a luta de nossos antepassados em forma de arte!

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ACERVO DE COMUNICAÇÃO DECOLONIAL, INTERSECCIONAL, ANTIRRACISTA, CIDADÃ E COMUNITÁRIA ATUALIZADO POR MEMBRES DO COLETIVO PRETARIA. UM PROJETO DO PRETARIA.ORG