Doutor Gama: o filme de herói que precisamos

Coletivo Pretaria
4 min readAug 27, 2021

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No mês em que se completam 139 anos da morte de um dos advogados mais influentes do Brasil tive a oportunidade de assistir na tela do cinema, depois de mais de um ano de distanciamento, um dos filmes mais esperados do ano.

“Doutor Gama” (Brasil, 2021), de Jeferson De, é um filme fora da curva, no que tange as produções brasileiras sobre seus heróis e heroínas de pele negra, mas que deveriam se tornar uma constante em nossas salas de cinema. Luiz Gama, personagem histórico na conquista abolicionista do século XIX ­­– adorado e disputado pelos dois lados do espectro da política brasileira ­– é uma figura que vem recebendo, um justo, reconhecimento tardio sobre seus feitos. Diversos títulos, prêmios e honrarias vêm celebrando a vida do ex-escravizado que libertou mais de quinhentos de seus semelhantes, mantidos em cárcere e cativeiro injustamente.

Em “Doutor Gama” Jeferson De e equipe narram toda a grandeza biográfica de nosso patrono da abolição, mantendo uma linguagem leve e coesa, sem se render ao heroísmo que algumas narrativas cinematográficas tendem a fazer hoje em dia. Mesmo tentando dialogar com um público mais amplo, “Doutor Gama” apresenta alguns recursos estéticos que já são marcas no trabalho de Jeferson De, como o limiar entre o real e o imaginado com a onipresença de Luísa Mahin, a histórica mãe de Gama; e a diegese da trilha sonora que evoca a ancestralidade com tambores, cantos e sons como o arco e flecha num plano aberto de uma janela em direção a mata. Pequenos detalhes também mostram a sensibilidade na confecção narrativa do filme, como a retirada dos sapatos do pequeno Luiz ainda na Bahia quando é levado na condição cativa de barco ao Rio, e também o par de sapatos recebidos de presente pelo protagonista quando ele decide conquistar sua liberdade de direito.

Elemento interessante que ajuda a temperar esta ficção biográfica é a presença da dupla de insurgentes que libertam à força outros escravizados, sendo um contraponto à luta institucional de Gama, que até justificava o assassinato como legitima defesa para a escravidão, mas prezava pela justiça e moral como seus instrumentos de liberdade. Quando a selvageria e imoralidade da branquitude colonial ameaça a vida de Gama, é exatamente este contraponto rebelde que mantém a sua vida, visto na cena em que a quilombola Maria Julia, interpretada magistralmente por Dani Ornellas, e seu parceiro salvam o advogado de uma tocaia. Para bom entendedor, percebemos que nem sempre apenas palavras irão garantir a nossa liberdade. Porém, é com a arte da oratória que o filme de Jeferson De apresenta o seu maior trunfo em seu clímax na cena do tribunal, até nisso o longa-metragem consegue ser original e pungente, sem grandes estripulias. “Doutor Gama” inova no clássico gênero de filme de tribunal ao representar a história de um homem negro em pleno tempo de escravidão usar as próprias ferramentas do senhor — retórica, argumentação e legislação — para desmantelar a casa grande. Fazendo referência a toda acidez da sátira presente na obra escrita de nosso abolicionista, em tela, o personagem Gama ironiza as hipocrisias do império branco brasileiro, ao evidenciar que a verdadeira barbaridade não vem da senzala, nem dos quilombos, mas sim das casas grandes e brancas. Mesmo impedido de ter acesso a mesma formação que outros promotores brancos, Luiz Gama afirma sua autoridade magistral conquistando a liberdade de mais um de seus clientes.

Para coroar esse mês de comemoração da liberdade, assisti à peça “Luiz Gama — Uma voz pela liberdade”, protagonizada por Deo Garcez e a Soraia Arnoni, na escadaria da antiga Assembleia Legislativa do Rio, organizada pela deputada estadual Renata Souza, celebrando as mais recentes conquistas desta figura histórica. Talvez o maior prêmio para o legado de Luiz Gama não sejam os oriundos de vias institucionais, mas, sim, os que ele vem conquistando simbolicamente ao cair novamente nos braços do povo por narrativas de longa-metragem e espetáculo teatral que contam sua história. Que estas produções iniciem uma temporada que amplie ainda mais o campo das representações de figuras históricas negras nas artes e dramaturgias, feitas por nossas próprias mãos. Que Luiz Gama seja celebrado como ele realmente merece: um herói real de seu povo!

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