Verônica Lima (PT-RJ)

Enfrentando a lesbofobia, o machismo e o racismo na esquerda

7 min readJul 21, 2021

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Recentemente, a vereadora Verônica Lima (PT-RJ) foi vítima de lesbofobia, racismo e machismo, exercidos pelo vereador Paulo Eduardo Gomes (PSOL-RJ) na câmara legislativa da cidade de Niterói (RJ). Racismo porque nós, mulheres negras, não somos lidas como mulheres num processo cruel que nos desumaniza. Machismo porque esse vereador não exerceria tal violência contra outro homem branco. Lesbofobia porque em uma reunião fechada na sala da presidência, o vereador disse: “Você quer ser homem? Se você quer ser homem, vou te tratar como homem”. Embora a denúncia tenha sido feita publicamente em plenário, a fala lesbofóbica foi proferida em local onde não haveria, necessariamente, documentação pública, embora o relato da vítima e as testemunhas sejam também documentação oficial. O que quero ressaltar é como a não documentação relativiza e opera para a naturalização das violências que ganham ares de inocentes hábitos e práticas comuns, das quais não se ouvirá falar por muito tempo e que não terão quaisquer desdobramentos. Fica o dito pelo não dito ou, nesse caso, o dito pelo não escrito. O racismo, o machismo e a lesbofobia assumem diversas formas à medida que nem sempre são expostos publicamente e, muitas vezes, encontram formas sutis e dissimuladas de provocarem grandes estragos.

Verônica Lima é a primeira mulher negra a assumir o cargo de vereadora na história da cidade de Niterói e é autora da lei da Visibilidade Lésbica aprovada na Câmara Municipal da cidade em 2014. Em São Paulo, foi reeleita, em 2018, a deputada estadual Leci Brandão (PCdoB-RJ), mulher negra e lésbica com 76 anos. Ela é a segunda mulher negra eleita para a Assembleia Legislativa de São Paulo. Com mais de 46 mil votos, Marielle Franco (PSOL-RJ) foi a quinta candidata à vereança mais votada na cidade do Rio de Janeiro e a segunda mulher mais votada para este cargo em todo o país. É de autoria de Marielle o projeto de Lei da Visibilidade Lésbica, rejeitado por dois votos na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 2017, cuja mobilização originou a Ocupa Sapatão realizada anualmente pelos movimentos.

“Eu queria declarar o voto dialogando com as galerias e instigando que, nos próximos debates, a macheza dos sorrisos de canto de boca continue, porque, como eu disse anteriormente, nós não sairemos das ruas. (…) o lugar das mulheres lésbicas existe, a gente busca maior visibilidade, e haverá mulher lésbica aqui por mais três ou quatro anos na Câmara Municipal! Então, seja pelo sorrisinho, seja pelos votos, a gente vota e aqui é um processo democrático. Que seja pela manutenção da coerência, a bancada do PSOL estará aqui reivindicando esse lugar de uma construção coletiva, que vai muito além desse lugar do projeto. Algumas declarações que misturam calendário, homofobia, violência contra a mulher e estupro terão a devida resposta em cada ‘pela ordem’, em cada dia que estivermos aqui na Câmara Municipal”, disse a vereadora Marielle Franco, em 16 de agosto daquele ano, data de votação do Projeto de Lei da Visibilidade Lésbica.

Os sorrisinhos de canto de boca, a macheza, as falas de ódio fora dos microfones e dos holofotes, o roubo de autoria de projetos e não menção de crédito por trabalho e os comentários em elevador e nos corredores seguem sendo prática frequente nas casas legislativas brasileiras como forma de intimidação e de violência política contra mulheres negras lésbicas, bissexuais, trans e travestis. E estas são apenas algumas das microagressões sustentadas no machismo, racismo e na LBTfobia que mulheres negras no Parlamento vivem. São atitudes persecutórias que evidenciam cotidianamente a assimetria das relações de poder entre os sujeitos e que legitimam e naturalizam que a violência seja o pilar da sociabilidade e do ethos político brasileiro. Muitas vezes se diz que “a política é mesmo dura”. Quantas vezes quem diz isso não procura apenas se eximir da própria falta de ética e de decoro? Quantas vezes significantes abstratos como “a política”, “o parlamento”, “a casa legislativa” levam a culpa por atos de pessoas, essas, sim, dotadas de consciência e responsabilidade moral? Muitas vezes, são essas agressões feitas no privado que nos adoecem e nos expulsam da política. Afinal, as dinâmicas de poder que a população negra experimenta são diversas e por mais que possam se alterar com a ocupação de uma posição política ou econômica distinta, o racismo persiste em sorrisinhos de canto de boca, em agressões não documentadas, “duras” policiais, estupros e assassinatos.

Muitas pessoas acham que para que um ato possa ser configurado como racista, lesbofóbico e machista é preciso chegar às vias de fato. E recorro aqui a uma fala de um vereador de direita contrário ao Projeto de Lei da Visibilidade Lésbica no dia da votação: “Só não me tache como homofóbico, que eu não sou. Homofóbico é aquele que bate, espanca, mata homossexual. (…) Sou contra qualquer tipo de preconceito. Agora, não me chame de homofóbico pelo fato de eu ser contra o Projeto”. E é dessa forma que muitas de nós, mulheres negras lésbicas, somos tratadas, inclusive no campo da esquerda. Quando denunciamos alguma violência, imediatamente nos dizem: “essa acusação é muito grave. Descreva, nomeie”, colocando mulheres vítimas de violência como caluniadoras, difamadoras e, portanto, culpadas e criminosas. E esse tipo de fala ignora que a violência racista, machista e LBTfóbica também acontece por gestos, por comentários e como fala a feminista negra e intelectual Lélia Gonzalez por omissão. Não raro, muitas de nós, mulheres vítimas que denunciamos, nos tornamos alvo de Comissões de Ética, de julgamentos, de isolamento, de “olhar tipo porta de serviço”, como diz a canção “Pra matar preconceito” de Marina Íris. São dispositivos e atos que procuram o tempo todo dizer “qual é o nosso lugar”.

E escancarando as portas de serviço e dos fundos, Lélia González evidenciou o mito da democracia racial no Brasil. Inclusive, pela omissão de seu partido à época em relação às questões raciais, ela apresentou sua carta de desfiliação ao Partido dos Trabalhadores na qual afirma: “Pelo fato de discordar das práticas desenvolvidas pelo PT/RJ (expostas em carta dirigida ao companheiro Lula, datada de 7/11/85), sobretudo no que diz respeito ao estreitamento de espaços para uma política voltada para as chamadas minorias, peço meu desligamento do PT (…) Declaro, por outro lado, que não é sem dificuldades que tomo esta decisão. Afinal, foi graças ao PT (às suas propostas) que decidi a entrar na vida político-partidária, acreditando na possibilidade de inovação dentro da mesma. Disso não poderei me esquecer, embora sabendo que os caminhos são tortuosos e que a luta não pode deixar de continuar junto com e em favor dos explorados, oprimidos, discriminados”.

Dois anos antes de seu pedido de desfiliação, Lélia publicou o artigo “Racismo por omissão” no jornal Folha de S. Paulo criticando abertamente o PT: “O ato falho ao negro que marcou a apresentação do PT pareceu-me de extrema gravidade (…). Se falou de um sonho que se pretende igualitário, democrático etc., mas exclusivo e excludente. Um sonho europeizante e europeu. E isso é muito grave, companheiros! Afinal, a questão do racismo está intimamente ligada à superioridade cultural. De quem? Ora, crioléu, mulherio e indiada deste país: se cuide moçada!”

Até hoje esse sonho eupeizante está nas estruturas do campo da esquerda que demonstram complacência com homens brancos e reafirmam a seletividade da justiça. E é fundamental que tenhamos como guia que a cisheteronorma branca estrutura o sistema formal de justiça, mesmo nas instâncias internas dos partidos políticos que acabam estabelecendo punições de forma personalizada para os homens (a cada um a sentença que melhor lhe couber e menor lhe parecer), enquanto para as mulheres o sistema de justiça funciona com celeridade, promovendo expulsão, silenciamento, adoecimento e perseguição.

Os tribunais de exceção contra mulheres e pessoas negras só existem porque alguns corpos nunca vão para os tribunais, validando a cisheteronorma branca. E aqui não defendo o punitivismo. Pelo contrário, proponho a reflexão sobre um processo cíclico que julga, desumaniza e pune pessoas negras e que, portanto, nos coloca em situação de maior criminalização, o que acaba legitimando que somos as pessoas mais violentas e odiosas. Como feministas negras, temos a responsabilidade de expor e cobrar publicamente, como o fizeram Lélia e tantas outras militantes negras críticas às violências dentro do campo de esquerda. Mais ainda, temos que construir modelos de reparação que, necessariamente, passam pela distribuição de poder. Seja pela perda dos direitos políticos, por cotas, ocupação dos espaços de direção, pela eleição de mais mulheres negras e LBTs, além de financiamento e empenho político em campanhas pelos direitos das mulheres lésbicas negras. Os homens precisam se auto-organizar em espaços sobre masculinidades bem como pessoas brancas sobre branquitude.

É fundamental a construção de espaços seguros de escuta e acolhimento para mulheres vítimas de violências, para que possamos validar os depoimentos e as denúncias das nossas, reivindicação histórica da luta pelo fim da violência contra a mulher. Não podemos permitir, sob hipótese alguma, dúvidas sobre as vítimas, até porque ouvimos com frequência em casos de assédio e estupro: “quem mandou usar aquela roupa? Também, né? Você provocou. Quem mandou se portar como homem?”. É contra estas armadilhas do machismo, do racismo e da lesbofobia que precisamos lutar todos os dias, nos irmanando numa política de aliança entre mulheres, num exercício constante do feminismo lésbico que, em minha opinião, deve passar pelo amor entre mulheres. Amor este que não é apenas sexual, mas um amor fraterno, empático, honesto e, principalmente, político, consolidado e transformado em ação revolucionária a partir de uma ética feminista. Amar as mulheres significa ouvi-las, acolhê-las e lutar contra os tribunais em que somos insistentemente colocadas todos os dias e que nos criminalizam, nos fetichizam, ameaçam, ou nos silenciam.

É nossa responsabilidade sermos vigilantes dos espaços que construímos para que não sejam mais tolerados olhares de “porta de serviço”, sorrisinhos de canto de boca e machezas deste tipo. E aos companheiros da esquerda, cabe assumir seu papel nesse processo porque nós, mulheres negras LBTs, já estamos cansadas de dizer o óbvio e de ter que tornar compreensível a nossos agressores a natureza de suas agressões.

*Camila Marins é jornalista, feminista negra sapatão, mestranda em políticas públicas em direitos humanos na UFRJ e uma das editoras da Revista Brejeiras, uma publicação feita por e para lésbicas

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