Entrevista com Giovana Xavier — FLUP 2019

Coletivo Pretaria
8 min readOct 20, 2019

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Com patrocínio do Itaú Cultural e Instituto Pró-Livro, a Mesa de Abertura da FLUP 2019 “Por que umas e não outras?” contou com a presença das debatedoras Cidinha da Silva, Flávia Oliveira, Márcia Licá e Giovana Xavier, com quem batemos um papo sobre escrita de mulheres negras, formação de público e perfil de leitoras(es). A Mesa esteve sob mediação de Ana Paula Lisboa.

COLETIVO PRETARIA: Nesse vasto campo de formação de público através da publicação de livros e do desenvolvimento de novas epistemologias, as mulheres negras têm desempenhado papel fundamental tanto na vida acadêmica quanto extra-muros das universidades. O Itaú Cultural e o Instituto Pró-Livro, observando esse cenário, tem realizado, desde a Bienal do Livro desse ano, uma ampla pesquisa de campo entrevistando as(os) frequentadoras(es) de espaços que privilegiam o contato com livros e com suas autoras e seus autores, com a intenção de mapear que público é esse, qual seu perfil e se existe de fato uma nova formação de leitores, a partir desses novos saberes, dessas novas produções. Percebemos que o mercado editorial tem se beneficiado de nós, negres, nessa construção, já que é evidente que temos promovido um levante nesse sentido. Diante disso, reconhecemos o importante momento vivido, particularmente pelas escritoras negras, na criação de massa crítica de imaginários, resgate e exaltação de nossas memórias e entrega de epistemologias negras e novas visões de mundo, não é? De que forma você enxerga esse público? Trata-se de um novo público? Percebe que existe um crescimento? Como você sente?

Giovana Xavier: Acredito que depende do sentido de novo. Eu acho que se trata de uma continuidade ancestral, pensando em classe trabalhadora, em população negra no Brasil. Eu acho que é um público antigo com perguntas que, agora, têm sido ouvidas e respondidas, porque a gente tem bancado. E a gente só tem bancado porque são lutas históricas e, além disso, as políticas públicas dos últimos 20 anos têm tornado possível uma renovação das formas de pensar o fazer científico, dos padrões do mercado editorial, inclusive das próprias políticas dos Planos Nacionais de Educação, programas como por exemplo o PNAIC (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa). Tudo isso se insere em um contexto de conquistas que torna possível que essas novas epistemologias emerjam. São questões muito antigas que a gente carrega desde o navio negreiro e que agora começam a serem autorizadas por nós mesmos na academia. Por exemplo, na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) eu me considero uma professora que faz trabalho de base acadêmica, eu lido com centenas de estudantes a cada semestre, ano que vem completo 10 anos na casa, então é muita gente. E aí você percebe o impacto que tem formar jovens negros — e brancos também — dizendo que mulheres negras são intelectuais nos seus múltiplos fazeres, do quanto isso abre não só para novas perguntas, mas para novas formas de estar no mundo. E isso tem a ver com leitura. As pessoas começam a ler sua própria história de outra maneira. Tenho alunos que começam a ler a mãe faxineira como uma intelectual negra que viabilizou ocupar uma vaga na universidade pública. E dizem “pô, nunca tinha pensado em todo o investimento, no esporro que a minha mãe dava, eventualmente até as porradas também, que tinha a ver com uma mulher conduzindo um projeto de mudança, de ascensão, que passava por eu ir para a universidade, já que ela não pode ir”. Tem umas falas, assim, muito fortes na sala de aula, do tipo “a minha mãe deixou de ser uma intelectual negra para que eu pudesse ser” e o que eu tento trabalhar com essas falas, dentro dessa formação de um novo público leitor, é não tanto que a mãe deixou de ser, precisamos dilatar também o sentido de leitor, de intelectualidade, porque a mãe realizando esse movimento está ganhando o mundo a partir dos referenciais dela. Então acho que é isso: novas epistemologias têm a ver, com certeza, com acesso à Educação, eu acho que a Educação Universitária fundamental, e a gente tem conseguido emplacar nossas questões dentro do espaço acadêmico. E isso repercute do lado de fora, eu acho que é isso que dá medo, também, porque essas novas epistemes são dos poucos momentos que conseguimos perceber, sobretudo quando ouço aquelas falas, o quanto é difícil estando dentro da universidade ver como o seu trabalho atinge quem está do lado de fora, porque é tudo tão fechado, tão endógeno, mas é isso. Você está fazendo um curso, colocando autoras negras, levando novos referenciais e isso vai parar na sala, na mesa, no churrasco, na cozinha… então é um novo-velho leitor, na verdade, construindo ferramentas.

CP: Dentro desse pensamento de “novo-velho leitor”: as artes, citando algumas como o teatro, o cinema e a literatura, têm sempre a preocupação subjacente com a formação de público. Como Milton Nascimento canta em Nos Bailes da Vida, “Todo artista tem de ir aonde o povo está”. O cinema negro tem ampliado em número de realizadoras(es) e produções, consequentemente ampliando expectadoras(es); o teatro negro está em ascensão vertiginosa, com montagens batendo recordes de bilheteria, consolidando plateias; a literatura negra, sobre a qual estamos conversando, eclodindo em editoras e público ávidos por algo que se descortina. Você acha que o povo de uma maneira geral — essa entidade, o povo — está mais interessado no que temos a dizer, no sentido de que o nosso cotidiano, que sempre esteve aí, sempre estivemos permeando todos os espaços, porém sempre à margem, sempre tangenciando as realidades e elaborando o mundo a partir desse lugar invisível, agora tem sido exposto por nós mesmas(os), conferindo centralidade no campo das representações? As pessoas estão mais próximas da nossa história contada por nós?

GX: Ah, com certeza! Inclusive as pessoas estão mais interessadas nas histórias delas mesmas. É um impacto muito grande você se ver representado como uma personagem de ficção… Usando um auto exemplo: você vê na estante da livraria um livro que a capa é uma autora e uma mulher negra. Isso cria um movimento de possibilidade de, tipo, cara, eu também posso ser! E quando você percebe que você também pode ser, você se interessa, porque aí, você quer saber. Eu canso de fazer lançamento de livro e as pessoas perguntam “Ah, como foi para você virar professora? E como foi para você escrever o livro?”, que são perguntas que as pessoas dificilmente devem ter feito para a Clarice Lispector, porque já tinha uma obviedade ali, também. E eu acho que a gente traz isso de novo, é uma inovação. Eu falo isso na universidade: a presença da comunidade negra na academia é inovação científica e tecnológica, vocês não querem aceitar isso, mas nós somos a inovação científica e tecnológica, porque a gente democratiza as formas de pensar, de produzir, só parado, assim. Nossa existência ali já gera um conteúdo sem necessariamente falar. Então eu acho que sim, tem aumentado. Eu acho que tem uma questão também de uma linguagem mais coloquial, mais acessível, mais direta. A academia se organiza assim: ”texto bom é aquele que ninguém entende”. Por que? Aí se você fala dirigem várias críticas. Gente, eu escrevo o que é, “isso é isso e ponto”! Aí isso não está bom? Tem que dar uma volta para que ninguém entenda? Então eu acho que a gente traz esse tipo de questão. Por que ser simples é sinônimo de não ter qualidade? A presença das classes trabalhadoras na universidade, tanto do ponto de vista estudantil quanto de docência, interfere nisso e acho que para além da universidade. Boa parte da população brasileira está fora do acesso à internet, mas, ao mesmo tempo, muita gente tem acessado e eu acho que isso criou uma nova linguagem. Hashtag é uma coisa, sei lá, de 10, 15 caracteres e que eu estou fazendo um curso. Estava vendo recentemente o vídeo da Gabi De Pretas (youtuber) criticando — e eu concordo com ela — a hashtag PretosNoTopo, não no sentido de não usar, mas problematizando. E eu fiquei pensando: #PretosNoTopo, distribui para as pessoas discutirem e é capaz de ficarmos um semestre inteiro falando disso. Então existe esse novo espaço público de debates. E isso dissemina uma linguagem interessante. Antigamente não era assim, mas hoje é natural você tirar foto segurando um livro. Isso, para mim, é um exemplo importante. Há 20 anos, quando eu estava na graduação, eu não tirava foto com livro, eu não tenho foto com livro! Agora, você compra um livro, você tira…

CP: Livro se tornou um objeto de desejo, não é?

GX: Sim! Você posta, marca a autora(or)…

CP: As redes tornaram essa relação autora(or) x leitora(or) muito próxima, muito cotidiana, se tornou parte da experiência da(o) leitora(or) com o livro, não é?

GX: Sim, acho que isso precisa ser lido como uma onda: tem o livro, o lançamento do livro, conversa com a(o) autora(or), tira a foto…

CP: E é uma onda para você ter esse contato?

GX: Eu sou professora, né? Ocupar esse lugar também de escritora, que lógico são lugares que dialogam, mas que são diferentes. Tem uma ideia do escritor, da introspecção, do isolamento. E um dia eu quero escrever mais sistematicamente sobre isso, porque também é uma forma de ver o impacto do trabalho. Vai mãe, vai vó, vai filho pequeno, vai adolescente e isso é muito legal. De novo, pensando em autores canônicos na história do Brasil: não vai essa galera para o lançamento do livro. A começar por onde essas pessoas lançam livros, não é? A gente faz lançamento de livro no Parque Madureira, faz em um lugar pequeno na FLIP aí lota o espaço, fica muita gente do lado de fora…

CP: É sempre um evento catártico, não é? Seria para ser lançamentos pequenos, mas tomam um vulto…

GX: Pois é, eu acho que isso tem que ser lido como um dado! Não só como um “ah, que legal!”

CP: Ou seja, além dessa análise que está sendo feita pelo Itaú Cultura e Instituto Pró-Livro…

GX: Eu acho que precisa existir uma análise sobre o fenômeno de lançamento de autoras negras, acho isso é muito importante. Por que que lota assim? Porque tem vários porquês, não é? Considerando que, historicamente, a gente está nas fotos da antropometria e das páginas policiais, querer só a foto…

CP: Para o campo das representações isso é um avanço, uma conquista a ser celebrada e estudada…

GX: A gente precisa aprender a olhar essas coisas que a gente naturaliza. Ainda mais nesse tempo político difícil. Isso é informação nova, não é só o lançamento pelo lançamento. Pensando na história da leitura no Brasil, em um país onde a gente continua reeditando Monteiro Lobato… É isso.

CP: Giovana, agradeço pelo seu tempo, nos oferecendo importantes reflexões, relatos de experiência e pelas importantes contribuições com o seu trabalho na docência e na escrita, agradeço pelo convite que o Itaú Cultural e o Instituto Pró-Livro fizeram ao Coletivo Pretaria para que entrevistássemos você no contexto da Mesa de Abertura da FLUP 2019 e estamos muito ansiosas para ouvir você e as demais mulheres negras maravilhosas que compõem a Mesa. Muito obrigada!

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