Era uma vez no preto velho oeste

Coletivo Pretaria
8 min readDec 20, 2021

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Enquanto os eventos dessas histórias são fictícios…
Essas. Pessoas. Existiram.

The harder they fall, ou Vingança & castigo, como foi traduzido aqui, é um estrondo. Não o estrondo que queríamos que fosse, mas tudo envolvido no filme carrega um grande peso. Pela frase inicial que abre a obra já temos uma dica: essas pessoas existiram. Historicamente aprendemos com nossos bangue-bangues favoritos que a história do velho oeste americana é branca, com pequenas participações, principalmente em vilões e coadjuvantes, de mexicanos e indígenas. Porém, se tem uma coisa que aprendemos com a revirada histórica recente é que nem sempre a história oficial conta a verdade. O cinema é uma das linguagens mais eficazes para esta reescrita da verdade. Hollywood que diga.

Há relatos que ao menos um quarto dos cowboys que desbravaram o velho oeste eram negros e com a trama de The harder they fall temos a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre essa história. A direção criativa de Jeymes Samuel, em seu longa de estreia, usou nomes e características pessoais de figuras negras icônicas para criar uma típica de história de velho oeste, com muito tiro, explosão, vingança e castigo. O próprio diretor disse em entrevista que tudo que queria era criar mais uma história do gênero, mas com a única diferença que seus protagonistas fossem homens e mulheres negras. O que faz toda a diferença.

Vingança & castigo conta a história de Nat Love e sua gangue de foras da lei que buscam vingança contra o cruel Rufus Buck, recém liberto da prisão. Com um cast de estrelas — Jonathan Majors, Idris Elba, Zazie Beetz, Regina King, Delroy Lindo, Lakeith Stanfield — o filme é um dos marcos do gênero recente, sendo na história um dos poucos filmes sobre o velho oeste dirigido, protagonizado por pessoas negras, tendo as mesmas como público alvo. Uma produção Netflix, Vingança & castigo tem uma linguagem bem rápida, ácida e descontraída, o que atende muito bem o público geral dessa plataforma de filmes, mas acaba deixando a desejar algumas questões.

Porém, com esse texto não pretendo apenas dissertar sobre a qualidade do enredo do filme. Estudando sobre a história dos cinemas negros pelas cinematografias do mundo aprendemos que nem sempre o que importa em um filme é o seu apelo narrativo. Da mesma maneira que Vingança & castigo faz um resgaste histórico e prova que o velho oeste também era preto, analisar a história dos westerns no cinema prova que existiram pessoas negras dirigindo filmes do gênero.

Como o restante da história negra do cinema, muito se perdeu sobre os primeiros faroestes realizados por pessoas negras. Só se sabe que existiram muitos, porque o gênero era bem popular entre os races movies, produções pretas de baixo custo destinadas para pessoas negras de centros urbanos como Chicago e Nova Iorque. Muitas vezes também as histórias do velho oeste negro foram contadas por mãos brancas em clássicos, como Audazes e malditos (1960) de um tardio John Ford e Django livre (2012) do polêmico Quentin Tarantino. Assim, para o tiro não sair pela culatra, apresentarei seis produções negras que como as balas no tambor de um antigo revólver nos dão munição para argumentar que o velho oeste também era negro.

1. Two Gun Man From Harlem (1938; direção: Richard C. Kahn)

Os dois atiradores do Harlem conta a história de um cowboy falsamente acusado de assassinato que foge pro Harlem, onde ele assume a identidade de um gangster ex-pastor para pegar os homens que o acusaram. Só por essa ousada sinopse qualquer espectador fica instigado a assistir. O filme fez parte do circuito de race movies, onde o diretor Richard C. Kahn foi um profícuo contribuidor com filmes B de gênero. O filme estrela também o galã Herb Jeffries que participou de vários outros westerns de elenco todo negro. Como muitas outras películas do movimento, Os dois atiradores do Harlem lida com os desafios do novo negro estadunidense das primeiras décadas do século XX, onde a migração para o norte urbano, ou oeste selvagem, é uma chance de fugir do sul branco supremacista.

2. O retorno de um aventureiro (1966; direção: Moustapha Alassane)

O primeiro western africano é um audacioso curta metragem. Não propriamente um western no sentido clássico, o pioneiro Moustapha Alassane brinca com as convenções do estilo numa África em fervorosa descolonização. A trama se passa quando um jovem nigerino volta para sua aldeia após viagem para os EUA e presenteia seus camaradas com equipamentos de cowboy. Entrando no personagem os cowboys africanos começam a perturbar sua aldeia com brigas e assaltos. O retorno de um aventureiro é uma crítica satírica de uma África que tenta se modernizar nem sempre importando tudo que vem de fora da melhor maneira.

3. Um por deus, outro pelo diabo (1972; direção: Sidney Poitier)

Na sua estreia como diretor após uma série de filmes que dialogavam com os civil rights dos anos 1960, Sidney Poitier dirige e protagoniza Um por deus, outro pelo diabo. Poitier interpreta Buck um cowboy que trabalha escoltando escravizados libertos do sul estadunidense para a expansão no faroeste. Para impedir os recém libertos — que tinham, teoricamente, o direito a quarenta acres de terra e uma mula — um grupo de brancos são contratados para caçar estes desbravadores negros, e trazê-los de volta ao trabalho análogo ao cativeiro nas plantations do sul. Após diversas baixas dos inescrupulosos brancos Buck e a caravana de famílias negras se aliam a um irreverente pastor, interpretado pela estrela Harry Belafonte, que os ajuda a seguir jornada. A única chance de Buck e seu grupo está nos indígenas nativos da região, que relutam inicialmente a ajudar os libertos, mas ao perceberem a selvageria dos brancos acabam se aliando a luta de Buck e Preacher. A estreia de Poitier marca uma das primeiras alianças entre negros e indígenas narradas pelo cinema, aqui os vilões bárbaros e estereotipados, normalmente os nativos nos werstens clássicos, são brancos que vem para roubar, matar e destruir.

4. Thomasine & Bushrod (1974; direção: Gordon Parks Jr.)

Thomasine & Bushrod é o representante da blaxploitation da lista. Junção de black mais exploitation a nomenclatura desse gênero por si só já apresenta as suas controvérsias. Gestado inicialmente como uma resposta popular e apelativa de cineastas negros emergentes ao novo cinema de hollywood nos anos 1970, com homens e mulheres negras em papéis fortes, audaciosos e sensuais, o movimento logo foi cooptado pela indústria branca que explorou financeiramente o gênero até secar toda sua criatividade. Em Thomasine & Bushrod Gordon Parks Jr. — filho da lenda de mesmo nome que dirigiu o insuperável Shaft (1971) — experimenta recontar a história de Bonnie e Clyde num contexto dos EUA nos anos 1910 onde o alvo de seus crimes são capitalistas brancos e os beneficiados são apenas cidadãos negros, mexicanos, nativos indígenas e até brancos pobres. Interessante no filme é notar o protagonismo da atriz Vonetta McGee e alguns questionamentos feministas que a película apresenta e discute.

5. Posse — A vingança de Jesse Lee (1993; direção: Mario Van Peebles)

Liderados por Jesse Lee um grupo de soldados negros são enganados por um coronel corrupto da guerra Hispano-americana em Cuba, mas conseguem fugir do conflito carregando uma enorme quantia de ouro. Tentando despistar o furto, o grupo foge em direção ao oeste enquanto se depara com vários fantasmas de seus passados. Chegando na cidade negra de Freemanville, recém erguida por libertos, o grupo de Jesse Lee se envolve na luta dos moradores contra um xerife, que tem relações com a Klu Klux Klan, e tenta destruir a cidade para dar passagem a um trilho de ferro. O filme todo é contado na perspectiva de um velho sem nome, interpretado por Woody Strode estrela de Audazes e malditos, funcionando assim como uma homenagem a todas as pessoas negras que desbravaram o velho oeste, mas foram esquecidas pela história. Posse é dirigido e estrelado por Mario Van Peebles, filho de Melvin Van Peebles outro pioneiro do movimento blaxploitation.

6. Rosewood (1997; direção: John Singleton)

O massacre de Rosewood dramatiza os eventos históricos 1923 onde uma gangue de brancos arrasa Rosewood, uma cidade negra no estado da Florida. A carnificina na cidade tem origem quando uma mulher branca casada de uma cidade ao lado decide incriminar um homem negro pela agressão sexual que sofreu de seu amante branco. Ao mesmo tempo, chega na pacata Rosewood o misterioso Mann, um veterano da primeira guerra que tenta recomeçar a vida comprando um terreno na cidade. Logo associam o forasteiro ao assediador e a cidade começa a ser devastada pelos raivosos brancos, poupando algumas poucas mulheres e crianças. Mann, agindo como um herói de faroeste, começa a organizar uma fuga épica dos sobreviventes no estilo das mais empolgantes cenas de ação do gênero. Por não se situar de fato no velho oeste Rosewood é mais um dos filmes que não se encaixa por completo na alcunha de western, mas mesmo assim o seu enredo tem elementos caros ao gênero, principalmente em suas versões negras.

Os seis disparos que apresentei aqui não são unanimidades, nem películas definidoras do gênero, muito menos são filmes fáceis de se ter acesso, sobretudo em português. Porém, inovam ao tentar narrar o velho oeste sob outra perspectiva, onde pessoas negras não são coadjuvantes, nem figurantes, mas sim aqueles que protagonizam, escrevem, dirigem e contam suas próprias histórias.

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