Escritas continentais de um cinema afro-atlântico — uma conversa com Wuldson Marcelo
Em mais uma conversa com cineastas negros de todas as regiões do Brasil troco dessa vez com Wuldson Marcelo representando Cuiabá e o nosso centro-oeste. Wuldson me contou um pouco de sua relação na infância com o cinema e como sua paixão pela leitura o inspirou a ser um autor hoje. Além de sua relação com a literatura, Wuldson atua no Coletivo Audiovisual Negro Quariterê, um dos maiores expoentes de sua região na circulação do cinema negro. No final de março de 2021 o Quariterê realizou a Mostra AfroCine, a qual Wuldson fez a curadoria, exibindo filmes numa perspectiva do cinema negro afro-atlântico.
Pensando na sua infância: como se deu a sua relação com o cinema?
O cinema surgiu como um impulso, como uma vontade de ser cineasta quando eu tinha uns catorze anos mais ou menos, assistindo a filmes nas madrugadas. O clique definitivo ocorreu com um filme que, nos dias de hoje, nem gosto muito — depois que a gente cresce, percebe melhor os defeitos de um filme –, era O Maior Espetáculo da Terra, do Cecil B. DeMille, de 1952. Considerado um dos piores filmes a ganhar o Oscar, eu não sei o porquê daquele filme ter me encantado tanto naquele momento exato. Aquilo me pegou tanto, que pensei na hora “Ah, vou fazer cinema”, mas estando em Cuiabá era um pouco difícil. O curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) é de 2018. Quem faz cinema em Mato Grosso, sendo formado aqui, é graduado em Publicidade ou Rádio e TV. Para mim, que sou formado em Filosofia, demorou muito ter a oportunidade de fazer cinema, que veio a partir do meu primeiro livro lançado, Subterfúgios urbanos, em 2013, pela Editora Multifoco, do Rio. Aí em 2014, conheci uma galera que fazia cinema, do coletivo Miraluz Films, e recebi um convite para trabalhar no roteiro do A primeira morte de Pedro, do Felippy Damian. Minha contribuição no roteiro foi escrever as cartas que o protagonista recebe. Cartas que aparecem em uns três ou quatro momentos do curta. Então, eu fiquei com essa turma, ingressando na Miraluz Films. Eu escrevi um roteiro e mostrei a eles, que gostaram, Se acaso a tempestade fosse nossa amiga, eu me casaria com você. Conversando com o Felippy, fizemos algumas mudanças. Ele assinou comigo o roteiro e dirigimos juntos o curta-metragem. Depois dessa experiência, veio outro filme com a Miraluz, dessa vez com codireção da Carol Damasceno, que está em pós-produção… são seis filmes independentes do nosso coletivo. Aí surgiu o Quariterê, um coletivo negro, e já estamos no segundo filme. O primeiro foi em 2019, A Velhice ilumina o vento com direção da Juliana Segóvia, em pós-produção no momento, agora acabamos de gravar Aqui jaz a melodia, um roteiro meu, com direção compartilhada com a Segóvia.
Realmente os coletivos têm esse poder de impulsionar a gente.
O meu aprendizado foi pela cinefilia mesmo: vendo, lendo e depois na prática. Para escrever roteiro, eu li muitos livros para aprender e a direção foi das lições dos cineastas que admiro e no feeling, já que é aprendizado. Agora, eu tenho mais experiência com a direção — já estou na terceira — e todas elas foram compartilhadas, ainda não dirigi sozinho. Esse é um projeto para o futuro. Mas eu gosto muito do trabalho em dupla e coletivo. Não à toa, estou em dois coletivos de audiovisual.
Sendo um escritor, como você vê as relações das linguagens literárias e audiovisuais?
O cinema influencia a minha escrita literária. Sempre houve a comparação do que eu escrevo com o cinema, do tipo: ‘ah, seus contos lembram o Tarantino’. E eu tinha uma atração muito forte pelo cinema, tanto que tive vontade de fazer primeiro cinema, até que descobri a escrita literária. Eu sempre fui um leitor voraz, desde criança minha mãe me colocou pra ler, ‘ah, você não está fazendo nada, vai ler então, pega o texto da próxima aula e vai ler’. Tanto que todos os textos do livro didático que precisavam fazer uma leitura para interpretação, eu terminava lendo antes das próximas aulas. Lia tudo. Então, acho que tem essa questão de ser um bom leitor desde criança que cruzou com minha paixão por cinema, no tratamento das imagens. Por isso, a minha literatura é essencialmente cinematográfica. Meu encanto com o cinema é tão grande, que eu comecei a escrever meus contos já trabalhando com imagens, como filmes. Muitas vezes com aquelas rubricas de roteiro entrando no meio… as movimentações. O cinema acabou sendo um recurso também para minha literatura, o que é até um diferencial.
E o contrário, será que acontece também, da literatura influenciar o jeito que você escreve roteiro?
Já ouvi algumas vezes que meus roteiros são literários. Eu tenho até que trabalhar nisso, mas ele é assim realmente. Penso muito na confluência das linguagens. Não vou dizer que é uma marca, mas é o que me constitui. Eu vim da literatura, meus primeiros passos na arte foram na literatura. No meu primeiro roteiro, eu já tinha dois livros publicados. Isso acaba fluindo naturalmente. O Se acaso… tem um poema nele, de uma das namoradas. Geralmente, tem essa relação com a poesia.
Na década passada o cinema negro cresceu exponencialmente, como você imagina nacionalmente o cinema negro nos próximos anos?
Eu vou começar falando sobre a história do coletivo Quariterê porque tem relação com a sua pergunta. Tem dois momentos marcantes para o coletivo: o primeiro, é um curso do professor Celso Prudente realizado pela Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer, aqui de Mato Grosso, sobre cinema negro. Nele, não foi só uma sensação minha, mas algo compartilhado pelos participantes, a surpresa de ver muita gente negra no curso, interessada em cinema. Era majoritariamente negra. A partir dali eu tive contato com as minhas futuras e futuros companheiros de Quariterê.
O segundo momento foi uma mostra de cinema negro realizada por essa mesma Secretaria, onde nenhum cineasta negro, nem uma entidade representativa do movimento negro ou lideranças das religiões de matriz africana ou culturais foram procuradas para elaborar ou participar do evento. E, para completar, organizaram um painel com contemplados em um edital e todas essas pessoas eram brancas. Além disso, uma das sessões da mostra era ‘Deu branco: filmes de cineastas brancos com atores negros’. Aí ocorreu uma movimentação contrária à mostra acusando-a de racismo. E, de fato, não tem outra palavra para descrever o episódio. Ela era intencional e duplamente racista. Primeiro, por ignorar que existiam pessoas negras fazendo cinema em Mato Grosso, depois pelos nomes envolvidos na produção serem todos brancos. Depois disso, fomos consultados para reorganizar a mostra em nova data, e era algo que as entidades do movimento negro desejavam que fosse realizada. Então, ajudamos a montar a programação. Mas, pra mim e, seguramente, para outras e outros o desejo era que não se realizasse aquela primeira edição.
De 2017 para cá, o Quariterê organiza a mostra, fazendo a curadoria, descobrimos a grande quantidade de cineastas negras e negros que há no país. Falo de todas as regiões. Foi algo que me surpreendeu, principalmente pelo significativo número de filmes realizados por mulheres negras. Tanto que a terceira mostra, a primeira competitiva, foi dedicada às mulheres, e, não de forma premeditada, a grande maioria dos filmes concorrentes em 2018 foram dirigidos por mulheres negras. Em conversas com a Joyce Prado, que foi uma das convidadas dessa edição, percebi que o cinema negro é um reduto para expressão dessas mulheres. A luta é essa, parando para pensar o quanto o cinema negro acolhe essas mulheres, mesmo que ainda tenhamos a presença do machismo. Eu vejo pelo próprio Quariterê, porque a maioria dos membros é de mulher. É um coletivo que, de certa forma, é regido pelas mulheres.
Eu entendo os coletivos como uma forma de afirmação da nossa identidade, na ideia de aquilombar mesmo. Acho isso muito bonito, uma palavra e definição lindas, o aquilombamento. Então, você vê o cinema negro nos últimos anos representando isso. E nota o quanto tem de coletivos no Brasil, porque houve vários filmes que nós recebemos que são deles. Penso que é algo forte, que não para por aqui.
Me conta um pouco mais do Coletivo Quariterê e o seu trabalho nele.
Falando da minha ação no coletivo, ela funciona mais como curadoria. Principalmente na Mostra de Cinema Negro, mas há também o Afrocine, uma sessão que leva o cinema negro às salas de aula das escolas públicas de Mato Grosso e tem exibição também nas universidades. Eu venho dividindo com a Anna Maria Moura a função, desde 2018, mas sempre há alguma convidada ou convidado ou membro do coletivo para compor a comissão. Também há os roteiros e o trabalho na direção, e penso no futuro fazer um curso de edição. E em ‘A velhice ilumina o vento’, eu fiz a assistência de direção para a Juliana. Falando do Quariterê, o nosso próximo passo é ter um CNPJ para nos tornamos uma produtora, porque ficamos dependendo muito desse registro, dessa oficialização, quem tem equipamentos e domina os meios de produção está em vantagem. Pensamos muito nisso, em consolidar o Quariterê e essa autonomia pode vir como uma produtora. Assim, comportando os nossos projetos no tempo que a gente considerar melhor.
Pra não ficar apenas refém de edital e outros financiamentos…
Sendo uma produtora, nós conseguiríamos ser de fato independentes ou caminharmos para isso.
Pensando no fato de geração de uma renda pra vocês, como uma profissionalização. Sei que a maioria das pessoas tem um trabalho paralelo, mas isso poderia gerar retorno tanto pra vocês como para outras gerações que podem vir.
Sim, isso é algo que a gente pensa muito, todo mundo tem trabalho ou seus projetos paralelos, mas nos unimos para fortalecer o Quariterê. A intenção é ter essa independência, em transformar o Quariterê em algo que gere renda para nós. E dar impulso ao cinema negro em Mato Grosso. Essa experiência do Aqui jaz a melodia é definitivamente cinema negro, assim como A velhice ilumina o vento. Meus outros dois primeiros filmes são de um cineasta negro, mas não são cinema negro.
Sim, essa é uma questão a se pensar realmente. Porque só a direção negra por si é algo a se louvar.
Sim, você vê pelo Steve McQueen, pois os primeiros filmes dele, Hunger e Shame, não são protagonizados por negros.
O primeiro longa do Jeferson De também é protagonizado por um ator branco, o Caio Blat, tem outros personagens negros, mas o protagonista mesmo é o Caio Blat.
É aquela importância que você falou de ter cineastas negros.
Sim, nem sempre é possível, ainda mais que a gente sabe das amarras da indústria. E acho necessário a gente não precisar se limitar.
Pensando na constante políticas de mortes e genocídios da população negra como você acha que a arte pode agir em contrapartida a esse movimento?
Acredito que ela proporcione uma outra perspectiva de vida, de criação, de se colocar no mundo e isso gera uma liberdade de se engajar naquilo que você acredita. Porque a arte pode ser entretenimento ou uma expressão cultural, mas ela representa alguma coisa a mais. Mesmo quando entretenimento, ela está revelando, defendendo algo. Acho que, nessa perspectiva, a arte possibilita se posicionar no mundo e dizer quem você é, no que acredita e te dá o impulso para outros afetos e ações nas relações. Quando comecei a escrever, a me pensar como escritor, percebi o resultado, a transformação, então, posso afirmar que a arte ajudou a me expressar muito melhor. Porque, apesar de tudo, como te falei, desde pequeno sou fissurado em leitura, e a minha formação é em Filosofia e tenho mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea, mas sempre bati nessa barreira da timidez. Então, quando eu decidi seguir o caminho da arte, me vi meio obrigado a falar sobre a minha obra, a me mostrar para o mundo. O que foi me deixando, com o passar do tempo, mais à vontade e hoje consigo transmitir aquilo que quero, ainda que bata uma insegurança, que pode ser comum. Acredito que a arte me deu o rigor e o gosto pela comunicação. Nesse sentido, é algo bem forte. Então, se ela é uma forma de se colocar no mundo, para nós, negros, é uma modo de resistir em um mundo que não quer que você exista. Então, imagina a reação da sociedade a um corpo negro que faz arte, um corpo negro que diz o que pensa.
‘Aqui jaz a melodia’ é uma história onde o candomblé é muito importante. Na verdade, é uma história sobre luto, sobre perda. Um homem negro que sofre e chora, algo que é emocional e afetivo. Por que o homem negro precisa ser duro, impenetrável? E esse pai, que é candomblecista, nos seus sessenta anos de vida, perde a filha, fica irreconhecível por essa partida repentina. Então, ele está em luto e se afasta da religião, mas nunca deixa de buscar nela as respostas para sua dor e dúvidas. Fazer um filme sobre candomblé é algo potente. Ainda mais hoje, em pleno 2021, onde terreiros são incendiados e pessoas jogam pedras em meninas, crianças, que estão trajando as roupas que expressam sua crença. Vivemos num mundo ainda hostil à existência negra. Fazer arte é resistir a isso.