Imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.

ESPANCADORES DE CRISTO

3 min readNov 4, 2022

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Cheiro de olíbano, eis algo que me remete imediatamente à infância. Eu sei, parece bastante específico, mas é justamente uma das coisas que, junto do cheiro de alho fritando no azeite, me remetem a “casa”. É com o olíbano que se faz o incenso usado em diversas missas católicas solenes. Por isso, pensar primariamente em igreja, para mim, é pensar em casa. Eu praticamente nasci em uma. Eu fui batizado, fiz catequese e fiz crisma. Depois, fui eu mesmo catequista, fiz parte de grupo jovem, trabalhei em missões, encontros, retiros, estagiei em pastoral… Católico praticante é a expressão.

Durante todo esse período em que o lema sempre foi a caridade, como servir aos mais pobres, frágeis e desvalidos — algo que eu já havia aprendido em casa, pelo exemplo dos meus pais –, eu não vi uma, nem sequer uma pessoa dessas que acreditam nesse “cristo” com arma na mão trabalhar junto de nós. Ninguém visitou nem uma escola sequer, um orfanato, uma casa de recuperação ou um asilo. Ninguém apareceu para preparar e entregar cestas básicas. Ninguém que se oferecesse para preparar milhares de saquinhos de doces para a festa do Dia das Crianças. Ninguém.

Hoje, esses arautos do “evangelho” de São Barrabás posam por aí, se achando neocruzados que, em vez de ter feito as verdadeiras provas de fé, parece que compraram um falso diploma da cristandade Whatsapp afora. Enquanto isso, eles invadem igrejas, hostilizam padres progressistas e vilipendiam dias sagrados assim como fizeram com o Dia de Finados. Eles se acham discípulos de Jesus, mas são a própria coroa de espinhos. Hoje, a turba dos golpistas de verde e amarelo que aterroriza as cidades é composta, sumariamente, por espancadores de Cristo. Porém, como disse a escritora Ana Paula Lisboa em sua coluna: “finalmente, o povo de Deus venceu!”.

Linchadores de santa

A data era 12 de outubro de 1995, Dia de Nossa Senhora Aparecida. No programa de televisão “O Despertar da Fé”, o então bispo da Igreja Universal Sérgio Von Helder aproveitou a data para levar uma estátua da santa ao palco do programa. Além de dar socos e chutes na imagem para, teoricamente, criticar a idolatria, o pastor disse frases como “Será que Deus, o Criador do universo, pode ser comparado a um boneco desse, tão feio, tão horrível, tão desgraçado?”. O dia seguinte foi de muitas críticas de entidades católicas e do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Em março de 2019, um outro bispo da mesma igreja, Rogério Formigoni, publicou, em suas redes, um vídeo em que está falando uma pessoa supostamente endemoniada que, além de atacar outras denominações pentecostais, também ataca a fé católica. A forma do ataque é, no mínimo, reveladora: “Essa Aparecida aí, desgraçada, toda pessoa que adora ela adora Iemanjá.”

À parte a intolerância de alguns setores evangélicos, que utilizam de sua fé para atacar outras crenças, um fator parece ter passado despercebido no debate: Nossa Senhora Aparecida é uma santa negra. A santa chamada de “boneco feio, horrível e desgraçado” é uma mulher preta grávida. Por isso, nada é coincidência. Mais curiosa ainda é a associação que se faz dela com uma entidade das religiões de matriz africana que não é associada diretamente à santa nem mesmo nos sincretismos religiosos, mas puramente por racismo de se relacionar uma entidade de pele preta a outra. Por isso, a expressão racismo religioso parece ser mais adequada para se falar deste tipo de intolerância religiosa.

O famoso ataque à santa se remete diretamente a uma frase racista bastante disseminada no país: “Chuta que é macumba.” E a cor de quem eles chutam é sempre a mesma. No último dia 12 de outubro, foram os bolsonaristas que, com bebidas nas mãos, invadiram o Santuário de Aparecida para agredir os fiéis que não se ajoelhavam ao seu messias particular. Quem mais os maus perdedores planejam chutar? Vigiemos, pois novembro está aí.

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