“Força de quem veio, de quem vai e de quem está”.
Continuum ancestral do Cais do Valongo aos espaços de saber
Especialmente no ano mais distópico para os que (re)existem nesse momento histórico do planeta, em que nem es mais inteligentes, nem es mais fortes resistem, mas, sim, es que melhor se adaptam são es que sobrevivem em vários níveis, impressionar as retinas com produções do cinema negro diante das telas de celular, tablets, computadores ou, no puro suco do luxo, das TVs HD — e não na sala escura do Odeon — é, sem dúvida, uma experiência para a posteridade.
São sempre envoltas em enorme expectativa as estreias de filmes de cineastas negres brasileires no Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul todos os anos desde sua primeira edição. No meu caso particular, isso se intensifica na medida em que muites des cineastas são amigues querides, que acompanho o trabalho, troco ideias, compartilho interesses em comum, bebo cerveja em ocasiões diversas — ou mesmo sem qualquer motivo. Todas essas vivências conferem, inevitavelmente, uma emoção que embarca no meu olhar para essas produções.
Dos (apenas!) 4 filmes que pude me lançar essa semana, escolho para abrir meu terreno de análises o filme “Mãe Celina de Xangô”, da minha querida Milena Manfredini. É um filme de uma realizadora que conheço com alguma profundidade para afirmar que o afeto, a delicadeza, o valor ancestral e a gratidão permeiam a construção/condução narrativa, bem como a composição e intenção das imagens partilhadas. Um cinema verdadeiramente implicado.
É uma longa história, contada em breves recortes amorosos, da vida de uma Ialorixá pautada em conquistas, conexões afro-atlânticas, respeito às tradições e à História afro-brasileiras e de Áfricas, profundo (re)conhecimento sobre a flecha que atravessa o continuum ancestral, aquela que orienta nossos passos coletivamente.
Mãe Celina de Xangô oferece poderosos ensinamentos sobretudo por uma postura que propõe conversas entre as dimensões encantadas das cosmovisões das religiões de matriz africana — e sua massiva influência no Rio de Janeiro, cidade onde vive –, da vida cotidiana — junto à sua irmã, no terreiro, revisitando histórias da infância ligadas tanto à religiosidade quanto à convivência familiar –, e da presença e contribuição nos espaços de produção de saberes e sentidos.
Milena alcançou, com imensa sensibilidade e fluidez, uma narrativa que pilariza o filme na importância de Mãe Celina de Xangô por onde seu corpo, seus conhecimentos e seu axé passam — Exu e Iansã presentificados no Cais. Sua presença no Parque Lage, onde a pesquisadora e diretora artística do Museu de Arte Moderna do Rio Keyna Eleison presentifica e correlaciona Lélia Gonzalez àquele momento que revela a “força de quem veio, de quem vai e de quem está”; incursão com respaldo simbólico junto aos pesquisadores da UFRJ no sítio arqueológico do Porto do Cais do Valongo, um projeto que não haveria como prescindir dos saberes e da interface ancestro-religiosa; a cidade, o samba, o botequim, a coletividade preta — deslocamentos tanto festivos quanto de incidência cultural –; à frente do Centro Cultural Pequena África, que remonta ao estímulo de Zózimo Bulbul ao Projeto Herança Africana — mesa para Oxalá em praça pública –; legado e continuidade através da filha e da neta.
Os Orixás regozijam e emanam Axé Máximo à Milena Manfredini e à concepção deste ebó fílmico. Certeza.