GENOCÍDIO É POP

Coletivo Pretaria
4 min readAug 6, 2021

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É mais fácil a gente imaginar o apocalipse do que o fim do racismo. É sério. Aposto a estátua de um bandeirante em chamas como isso é verdade. “Em verdade, em verdade, vos digo: é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que uma pessoa rica de privilégios entrar no Reino da Equidade Racial”, diria Black Jesus.

Acho que, até aqui, já deu para perceber que eu adoro uma parábola, não? É por isso mesmo que eu vou utilizar do maior depósito delas para o momento, a cultura pop, para exemplificar o quanto esse resetismo, a mania de querer resetar tudo de uma vez, não passa de um vício de linguagem antigo, bem antigo. Para isso, eu vou ter que retornar ao Bico Doce, o boteco que ficava próximo da minha escola do ensino básico lá na Freguesia, onde eu e outros amigos costumávamos gastar parte do dinheiro do lanche em fichas de fliperama. Foi lá que criamos calos nas mãos com o The King of Fighters ’97. O grande chefe do jogo era o deus Orochi, um espírito sagrado que despertou para extirpar o vírus que estaria matando a Terra: a raça humana.

Anos depois, eu estava querendo mesmo era comprar um sobretudo preto para meter a porrada no agente Smith, programa do filme “Matrix” que, ao ganhar personalidade própria, equipara a raça humana a um vírus e, logicamente, ele seria a cura. Outro salto, temos o vilão de Kingsman, o nerd Richmond Valentine, interpretado por Samuel L. Jackson, que deseja aniquilar grande parte da humanidade porque acredita que ela seja o… vírus do mundo. Salto além e, trocentos filmes de super-herói na toada, o Thanos do MCU se apresenta querendo garantir o equilíbrio intergaláctico ao… matar metade dos seres viventes do universo.

Orochi, Agente Smith, Valentine, Thanos. Antes mesmo de ouvirmos falar em termos como ecofascismo e fascismo ambiental, eles já estavam por aqui nos ensinando o que isso significa. Sim, sempre que eu me debruço sobre a nossa história, me vem também aquela humaníssima vontade de que um meteoro, enfim, nos encontre, de acordo. Porém, vale lembrar também de outro termo que baliza essa equação muito bem: racismo ambiental.

Em 1981, nos Estados Unidos, o líder negro pelos direitos civis Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr cunhou esse termo para falar das injustiças ambentais promovidas por leis, regulamentos e ordenamentos urbanos que os negros sofriam em suas localidades justamente por conta do racismo estrutural, que, quando não os expulsa de seus lugares de origem, permite largamente que eles sejam deteriorados. Um exemplo explícito disso está na privatização da Cedae, aqui no Rio de Janeiro. A estatal especializada em cuidar da água e do esgoto do estado estava longe de atingir os índices de qualidade, em geral, na distribuição de água nos últimos anos e, durante o processo de venda que se aproveitou dessa ineficiência, o único dos quatro blocos para o qual houve dificuldade para encontrar compradores foi o que cuida da água da Zona Oeste da capital — que corresponde por cerca de 70% da cidade e que integra bairros onde a população negra e pobre é maior — e de mais seis municípios: Piraí, Rio Claro, Itaguaí, Paracambi, Seropédica e Pinheiral, que também têm configuração sociorracial parecida.

Isso é: quem é vítima de racismo ambiental usufrui muito menos das benesses capitalistas, mesmo que, inclusive, pague até mais impostos para isso. Afinal, se, hoje, existem ilhas de benesses em diversas partes do planeta, é porque outras precisaram ser exploradas. Não existe Estado de bem-estar social grátis. Nisso, não podemos colocar, no mesmo pacote, os tais “danos” feitos ao meio ambiente de uma parcela da população — como favelizados, quilombolas, comunidades tradicionais e de terreiro, ribeirinhos e indígenas — que não foi convidada para a orgia de bens e recursos de outrora. Parafraseando um famoso ditado popular árabe, quem come tâmaras não quer plantar tâmaras.

Diante de tudo isso, esse anseio pop/hype de se eliminar o “vírus” da Terra através da extinção da raça humana soa, no mínimo, injusto. Porém, como negatividade e sapinho e TOC são coisas contagiosas, eu sei bem como é cair nessa espiral de queima-tudo. Por isso, eu transformei essas palavras do professor e filósofo Cornel West em mantra: “Nunca confunda ou relacione esperança com otimismo. Esperança vai contra a maré. Esperança é participativa, é um agente no mundo. O otimismo observa as evidências para determinar se podemos fazer X ou Y. A esperança diz ‘eu não dou a mínima, eu vou fazer de qualquer jeito’”. E o antirracismo é o puro suco da esperança para quem o apocalipse já é todo dia.

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