GLÓRIA

Coletivo Pretaria
3 min readFeb 2, 2023

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Há um tempo, um pouquinho antes da pandemia, eu vi um outdoor que me chamou muito a atenção. Nele, uma mulher negra jovem, de black power e muito bem vestida aparece, sorridente, tomando um café. A peça publicitária fazia parte de uma campanha da empresa para mostrar como a famosa paradinha do dia para se tomar a bebida pode se tornar, em vez de algo corriqueiro, um momento especial. Só depois que eu fui ver que cada peça da campanha simbolizava uma profissão. No caso dessa primeira que eu vi, com a mulher negra jovem, sorridente, de black power e muito bem vestida, ela estava cercada por um bloco de notas, um microfone com canopla e um gravador. Lia-se logo que ela era uma jornalista. A mulher negra, jovem, sorridente, de black power e muito bem vestida era uma jornalista.
Depois disso, me peguei fazendo um Ctrl + F mental para ver se eu me lembrava de quantas vezes eu vi, em um país que já teve publicitário dizendo que preto desvalorizava o produto anunciado, uma jornalista retratada como uma mulher negra jovem, sorridente, de black power e muito bem vestida em algum trabalho publicitário desses. Aquela tinha sido a primeira vez.
À essa altura, acredito que já seja óbvio dizer que o campo da comunicação social, seja via publicidade ou jornalismo, é um dos grandes responsáveis, ainda, por cristalizar discursos, imagens e narrativas no imaginário coletivo, sejam elas quais forem. Por isso, a atriz negra, bem vestida e de black power não foi escolhida aleatoriamente para fazer parte da publicidade disposta em um bairro nobre da Zona Sul para representar uma jornalista. Se, há alguns anos, alguém pedisse para uma criança desenhar uma jornalista, por exemplo, duvido que o lápis cor de pele que ela utilizaria seria o marrom.
Inclusive, há diversas camadas e leituras nisso. Uma delas, bem superficial, nos diz diretamente que podem existir jornalistas de todas as cores e raças mesmo no país mais racista do mundo. Outra, um pouquinho além, nos diz que as mulheres negras podem, sim, ser jornalistas. Já uma leitura mais avançada nos mostra que essa peça publicitária só existe porque alguém foi lá e abriu esse caminho. E esse alguém se chama Glória Maria.
Como a própria jornalista disse no programa Roda Viva do ano passado, ela fez tudo o que ela tinha vontade de fazer. Porém, Glória Maria foi muito além da sua própria vontade. Glória Maria foi a primeira repórter televisiva a fazer muitas coisas, inclusive, de matar o clichê de que um repórter precisa “se esconder”, ou seja, suprimir sua personalidade ao máximo para contar uma história. Uma daquelas lendas urbanas sobre neutralidade, sabe? E como é possível uma pessoa se portar de forma neutra se a nossa cor de pele fala antes mesmo de abrirmos a boca? Preto nunca foi cor neutra nem na história da moda.
Fala-se muito, e ainda se falará, sobre o pioneirismo de Glória Maria tanto-no-profissional-quanto-no-pessoal, só que a influência da representatividade está longe de se restringir apenas ao jornalismo. É só olharmos para o turismo, para a moda, para a publicidade, para a propaganda… Puro suco de lifestyle. Inclusive, recentemente eu vi um outdoor para vender apartamentos de luxo em que aparecia uma sorridente família negra curtindo um dia de sol na beira da piscina. O novo condomínio de alto padrão será bem no bairro da Glória. Que muitas delas consigam morar ali.

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Coletivo Pretaria

ACERVO DE COMUNICAÇÃO DECOLONIAL, INTERSECCIONAL, ANTIRRACISTA, CIDADÃ E COMUNITÁRIA ATUALIZADO POR MEMBRES DO COLETIVO PRETARIA. UM PROJETO DO PRETARIA.ORG