IDH CANCELADO
Não adianta. Por mais que a gente se esforce no exercício da empatia premium, somos todos ptolomaicos. É o universo que acaba girando ao redor da gente, e não o contrário. Por isso eu percebo que, eu, homem negro, hétero, cis, carioca e flamenguista não praticante, acabo me utilizando do meu universo, o Rio de Janeiro, para tentar explicar o mundo inteiro. E foi assim que eu fui parar em uma das minhas obsessões pessoais: o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos bairros da cidade.
Lançado pela primeira vez em 1990 para ser um contraponto complementar à frieza do PIB, o índice utilizado pela ONU foi criado pelo economista paquistanês Mahbub ul Haq e o economista e premionobelizado indiano Amartya Sen. Os três pilares principais para o cálculo do IDH são saúde, educação e renda. Por isso, não é de se estranhar que, no Rio, o maior índice dele esteja atrelado ao maior cheiro de maresia. Quanto mais próximo da praia, isso é, das áreas nobres da cidade, mais hospitais, escolas e concentração de renda se pode encontrar.
No Brasil, além do governo federal e das administrações municipais usarem o índice como base para a promoção de ações públicas, um outro setor também deita e rola em cima dele: o imobiliário. Mesmo que não seja explícito, é muito comum ver a livre associação dos maiores IDHs da cidades com a especulação imobiliária que, inclusive, cria novos “bairros” e bordões dignos de riso, como “o Leblon da Zona Oeste”, como esse mercado se referiu ao bairro da Freguesia de Jacarepaguá, principalmente durante o boom imobiliário pós-Jogos Olímpicos.
Foi com este fascínio que só recentemente eu percebi que, puf, a Barra da Tijuca havia ganho o pódio do IDH da cidade, ultrapassando Leblon e Gávea. Logo a pedestrefóbica Barra, que, por tantos anos, foi considerada um bairro praticamente anticarioca, por não ter esquinas capazes de inspirar compositores boêmios que cantassem as belezas de suas passantes de shopping em shopping.
E aqui chegamos até o clipe da Anitta, “Girl from Rio”, que une dois IDHs completamente diferentes: o bossanóvico (Zona Sul) com o do Piscinão de Ramos (suburbano). Além da discussão cultural que contaminou o lançamento, o que me impressiona mesmo é como é que a polarização Zona Sul x Zona Norte (ou ricos x pobres, mora bem x mora mal, sofisticação x populacho, brancos x negros) segue firme no imaginário que se tem sobre o Rio. Essa cidade partida do Zuenir Ventura que parece ter no Túnel Rebouças um portal que separa duas dimensões segue firme e forte. À parte disso, a Zona Oeste, que responde por 70% do território da cidade, veio comendo pelas beiradas e estabelece, na figura da Barra, a sua vingança. É como se, na calada da noite, a Barra tivesse roubado o portal simbólico do Rebouças e levado para o Elevado do Joá.
Enquanto eu escrevia essas linhas, o Rio passava pela maior chacina de sua história, no Jacarezinho, bairro da Zona Norte que ocupava o 121º lugar dos 126 da cidade, mesmo tendo sido “pacificado” em 2012. Ao contrário da Barra, se anda muito a pé e há muitas esquinas no Jacarezinho. Porém, 25** corpos executados a bala jamais seriam bem vistos nem do outro lado do Rebouças, nem do outro lado do Joá.
Em 2010, o IDH introduziu também o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM), que calcula as privações de educação, saúde e padrão de vida das populações. Porém, percebo que o cálculo continua defasado, deveras defasado. Existem muitas vertentes além do trinômio saúde-educação-renda que precisam ser levadas em consideração para se avaliar uma localidade. A probabilidade de ocorrer uma chacina oficializada, por exemplo, ou de helicópteros e caveirões aterrorizarem crianças é uma delas. Assim, é necessário que surja um contraponto direto ao Índice de Desenvolvimento Humano na figura do IDD, o Índice de Desenvolvimento Desumano. Se o seu bairro permite que corpos negros tombem no chão diariamente, por exemplo, ou que o ocupante do posto máximo da República seja a favor de se cancelar CPFs, seja na bala ou no vírus, o IDD é alto. Já se a polícia realiza uma operação em sua área sem atirar ou invadir a sua casa, o IDD é baixo. Só o IDD será capaz de mensurar o verdadeiro buraco que nos enfiamos. Democraticamente, lógico.
**o número de mortos subiu para 28, atualização no momento da publicação desta coluna.