INDÚSTRIA DA CARAPUÇA

Coletivo Pretaria
5 min readOct 27, 2023

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Naquele 28 de agosto de 1963 em Washington, nos Estados Unidos, o reverendo Martin Luther King se preparava para dar o seu antológico discurso “Eu tenho um sonho”. Minutos antes de subir ao púlpito, um jovem negro entra em seu escritório berrando por ele com uma ansiedade que beirava o desespero. Ele pede umas palavrinhas com seu mentor espiritual e King, contrariando seus assessores, o atende. No escritório esvaziado apenas para eles dois, o jovem diz que está desolado por não conseguir seguir os preceitos do pacifismo pregados por King, já que, naquela semana, era a segunda vez que haviam colocado uma cruz em chamas na porta de sua casa. Por isso, ele passou a andar armado onde quer que fosse e, como isso ia contra tudo o que Jesus pregou, ele ficou desolado.

O doutor King escutou o jovem, pegou em suas mãos e, olhando no fundo dos seus olhos, pediu para ver o revólver. O jovem o tira da cintura e o entrega ao mestre. King pega o revólver entre as mãos, com todo cuidado, e diz: “Irmão, lembre-se sempre do que o Nosso Senhor Jesus Cristo disse quanto a responder às agressões sofridas: se alguém bater em você numa face, ofereça-lhe também a outra. Sempre ofereça a outra face, meu irmão. Sempre ofereça a outra face”.

O jovem ouve essas palavras, fecha os olhos, se acalma e responde: “Mas mestre, e se eles voltarem uma terceira vez?”. Nesse momento, King abre as mãos do jovem, as une com as suas e, fitando os seus olhos chorosos, lhe devolve a arma. Mas não sem antes dizer:

“Lembre-se, irmão, que face, nós só temos duas”.

Lindo. Edificante. Moral. Mas completamente falso. Essa história foi inventada por mim do início ao fim e, apesar de ter algumas inconsistências (quem conseguiria entrar armado, num recinto fechado, pra falar com MLK àquela altura?), pode fazer a festa se cair em algum perfil ou tik tok da vida com menos escrúpulos. Porque, ao contrário do que muitos especialistas de redes dizem, é muito, muito fácil criar conteúdo que gere engajamento. É só você entregar o que as pessoas querem ouvir e embalar tudo com um pacote bonito e brilhante como aqueles plásticos no oceano que fazem os bichinhos comê-los e morrerem. Porém, além dessa entrega, existe um tipo de conteúdo que gera ainda mais buzz: entregar aquilo que as pessoas NÃO querem ouvir. Falo de chamariz de ódio mesmo.

No meu exemplo mais recente, eu caí na besteira de abrir o twitter, ou X, para cometer uma opinião. Sem entrar muito em detalhes, tuitei que “”. E foi como estourar a boiada. Depois disso, fiz aquilo que toda pessoa inteligente faria: silenciei a conversa e segui a vida. Porém, eu já havia lido alguns dos chiliques racistas antes disso e, para a minha surpresa, eles não vieram do gado de verde e amarelo costumeiro. Era de pessoas de esquerda e “libertárias”, sobretudo, de marxistas ortodoxos e adoradores do uso do termo “identitário” para deslegitimar a fala de qualquer pessoa negra, do sexo feminino ou LGBTQIA+, tudo em nome de um credo único chamado luta de classes. Porque identitários, lacradores e sectários são sempre os outros: nós.

Como eu cheguei na internet na época que tudo isso daqui era mato.exe, eu já sabia que esse meu post poderia causar um certo rebuliço. Parte do meu trabalho, inclusive, é mapear técnicas de engajamento nas redes e, como , esse me foi apenas mais um dia na internet. E o pior é que deu resultado. Se, antes, o meu perfil combalido mal estava chegando a cinco ou seis curtidas por post nos últimos meses, agora, ele saltou para cerca de 50. Esse ódio gerado contra mim impulsionou o meu perfil, inclusive, para quem não me odeia ou sequer me conhece.

Se essa instrumentalização do ódio alheio funciona em larga escala com arrobas pequenas como a minha, imagine com as grandes. Quando você odeia alguma coisa que vê redes adentro e passa a comentar e postar isso sem parar, isso gera um ciclo perfeito de engajamento. Todas as redes sociais te parabenizam por fazer isso. Todas. E não, eu não acho que está fora desse reator arc de reatividade. Eu mesmo já impulsionei muita coisa torta porque eu odiava ver aquilo na internet e queria mostrar para todos o quanto eu odiava aquilo. Porém, hoje, eu estou mais ciente dessa indústria da carapuça.

Dentro da pasta ódio, a subpasta racismo é uma das mais utilizadas para tudo isso. Observe só como é que, por exemplo, aquele comediante lá gera muito interesse em seu próprio nome — além de aumentar os seus seguidores — quando se utiliza do racismo para gerar risada e camufla isso tudo com um glacê chamado piada. Ou aqueles perfis apócrifos que brotam das bocas de lobo da deep web só para mandarem memes racistas pelo puro prazer de gerar engajamento através disso. Se, na internet, o ódio é uma indústria, o racismo é uma das suas principais fornalhas.

Enquanto não houverem regulações suficientes no universo digital para se evitar esse festival de crimes que as redes promovem — e ainda recompensam as pessoas por isso — não haverá ambiente digital seguro para ninguém. E é exatamente isso o que eu também penso sobre o tal “identitarismo”: enquanto não existirem medidas suficientes para se evitar esse festival de racismo, misoginia, lgbtfobia e capacitismo que a sociedade promove — e que também recompensa as pessoas por isso — não haverá sociedade segura para ninguém. Essa galera costuma dizer que, quem lacra, não lucra. Mas a verdade é que, quem xucra, lucra.

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ACERVO DE COMUNICAÇÃO DECOLONIAL, INTERSECCIONAL, ANTIRRACISTA, CIDADÃ E COMUNITÁRIA ATUALIZADO POR MEMBRES DO COLETIVO PRETARIA. UM PROJETO DO

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