MALDITA EXCLUSÃO DIGITAL
Elon Musk pode acabar com o Black Twitter. Pelo menos esse é um dos temores atuais na rede do passarinho azul depois que o bilionário passador de pano para supremacistas brancos resolveu ter o seu quinhão na plataforma que pode ser comprada por 44 bilhões de dólares. De dólares.
Até aqui, você, que não manja das internetâncias, deve estar se perguntando: o que é o Black Twittter? Bem, resumindo toscamente, o Black Twitter é a comunidade negra antirracista usuária do twitter ou, em outras palavras, aqueles “malditos negros lacradores verificados”, como já escutei e vi sem nem saber que fazia parte, ainda, do Black Twitter (não, nós não ganhamos uma carteirinha para isso). Porém, você deve ter acompanhado parte do frisson com o possível retorno do orkut, a primeira rede social a fazer, de fato, sucesso em massa. Com a onda retrô atual batendo forte por conta de diversos fatores, conforme já pontuou a artista visual Vivian Caccuri, a nova velha novidade está ressoando com uma brisa de frescor em meio ao pântano de fake news, ego e ódio que as redes teriam se tornado. Por isso, um retorno ao básico pode soar como algo confortável, quentinho e seguro, mas não, não é. E eu falo por experiência própria. Inclusive, a minha primeira experiência com “hate” na vida foi, justamente, no “pueril” orkut.
Eu já relatei essa “experiência” no PodZé, do escritor Zé Irineu Filho, mas repito aqui: era o meu primeiro dia de orkut em 2004, legal, maneiro. Como eu já tinha blog, participava de rede de fotos (Fotolog) e também de alguns fóruns de música, foi muito legal ver um local onde todas essas experiências podiam ser apreciadas em um só lugar. Lá, eu encontrei amigos próximos e outros que já não via há muito tempo, além das famigeradas comunidades. Uma delas era sobre um cachorro-quente muito famoso do meu antigo bairro, o Cachorro-Quente da Tia. Maneiro. Em um dos tópicos, uma pessoa comparava o valor do cachorro-quente dela com o de Big Mac, que estava bem caro na época, e eu comentei que o lanche valia a metade da promoção do cheeseburguer. Porém, a pessoa entendeu “valor” como se eu estivesse diminuindo o quitute e não falando do preço dele. Depois disso, eu aprendi, ao mesmo tempo, o que é um “fanboy” e um “hater”, já que ele começou a ameaçar pesadamente de morte caso “me visse passando na rua”. E tudo por causa de um cachorro-quente. Esse, repito, foi o meu primeiro dia na plataforma.
BRANQUITUDE 2.0
Depois disso, eu entendi três coisas: 1- Existem fanáticos por cachorro-quente 2- É muito fácil destilar ódio quando se está protegido por uma tela 3- Quem comanda uma rede social não está dando a mínima sobre o que está sendo interagido desde que se interaja. Tristemente, com o avançar das redes, a única coisa que se manteve em menos profusão foi a de número 1. Logo em sequência, veio a grande discussão sobre a responsabilidade, ou não, das grandes empresas de comunicação sobre o que estava sendo dito em suas caixas de comentários logo abaixo das notícias, onde acabou vencendo a abstenção da responsabilidade. O ambiente “livre” venceu.
No meio dessa grande novidade das “novas mídias”, uma palavrinha começou a ecoar forte, como um chavão ou pré-meme, sempre que alguém diferente dos demais aparecia nas redes sociais: maldita inclusão digital. E esse “diferente” dos demais, sim, eu estou falando da cor da pele.
No início dessa década, não era muito comum você ver pessoas negras com perfis na internet, já que, antes dos cybercafés e lanhouses, pessoas negras não tinham muito acesso. Eu digo isso porque eu, como uma exceção das exceções, tive antes mesmo dos meus colegas brancos, já na segunda metade dos anos 1990, graças a São Jorge (o meu pai) e São Alternex (o primeiro provedor do Brasil). Por isso, qualquer figura negra, como eu, que aparecia em algum fórum ou rede social corria o risco de, em algum momento, virar chacota racista que, primeiramente, vinha embalada com o mesmo comentário: maldita inclusão digital. E hoje isso melhorou muito, só que não.
Vocês lembram que, quando o Instagram surgiu, em 2010, ele era restrito apenas para quem tinha iPhone e dos protestos que aconteceram quando eles deixou de ser assim? Logo depois disso, passou também a surgir uma figura que, até hoje, gera muita controvérsia: o influenciador digital. O termo é tão plástico que você pode sê-lo mesmo que, teoricamente, você não precise produzir conteúdo algum. E foi no antagonismo dessa não produção que chegaram os influenciadores negros, com conteúdos sobre tudo — inclusive, antirracismo. E adivinha qual frase foi resgatada, principalmente, para se referir a eles? “Maldita inclusão digital”.
ÁGORAS DO AGORA
Sempre houve uma grande tendência a se chamar as redes sociais de ágoras como se elas fossem, de uma forma bem forçada, a versão digital da tal democracia que rolava na Grécia antiga. Eu concordo com a definição desde que lembremos, de fato, do que rolava nessas praças públicas de Atenas. Delas, só participava quem era considerado um cidadão: homens adultos livres (na maioria, proprietários de terras), com as obrigações militares em dia, que nasceram na cidade e que eram filhos de pais atenienses. Já mulheres, escravizados, crianças, idosos e estrangeiros, não eram considerados cidadãos. E quem seriam os atenienses das nossas redes atuais?
A jornalista Luciana Barreto, que tem uma pesquisa sobre os discursos de ódio contra pessoas negras na internet, relatou à coluna de Ancelmo Gois que os ataques têm algumas características: tentativa de desumanização da população negra, desprezo pelo continente africano, exaltação do mérito do branco e o ataque constante à estética negra. Nessa toada, a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos informou que, só em 2020, as denúncias de racismo nas redes cresceram 147,8% e, as de neonazismo, em 740% desde o início das denúncias, em 2014.
Essa é a plena reação dos autointitulados cidadãos das ágoras digitais contra a “invasão” dos tidos como “estrangeiros”, já que nós não pedimos licença para entrar nessas redes que, claramente — sem perdão do trocadilho — não foram feitas para nós. Porém, nós, como os periféricos dessas redes, devemos nos lembrar sempre que, na informática, a palavra “periférico” toma outro sentido. É tudo aquilo que é usado para alimentar a rede ou CPU com informações que, sem ela, nada daquilo faria sentido de existir. Se nós somos esses periféricos, que seja natural que, se tudo produzimos, tudo nos pertença.