Milena Manfredini, a cineasta que presta oferendas fílmicas
“Eu faço filme para quem eu amo”
Milena Manfredini é uma jovem, mas para quem enxerga o tempo não como uma constituição linear e pautada pela conjuntura africana, entende nos primeiros minutos de encontro com ela que se trata de uma vivência rica e antiga. Mesmo assim há duas realidades convivendo dentro desse corpo esguio, de forte presença e que me remete muito à beleza que é assistir ao movimento de uma garça, por exemplo. Ao mesmo tempo que sente-se nela a presença de mulher negra, artista e cineasta, pode-se desfrutar também da doce e divertida menina que ela abriga em seus compartimentos que, aí sim, só os mais chegados conseguem entrar.
Cineasta nata, das melhores que eu já conheci, Milena é uma das figuras mais generosas que eu conheço. Minha incursão no mundo do aprendizado sobre fazer cinema se deve a ela. Não me cansarei nunca de dizer. Foi Milena quem depois de assistir meu filme Tempo Ê no Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul me convidou eufórica para exibi-lo em uma mostra organizada por ela na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, onde pouco tempo depois me sentei para aprender mais sobre as incursões fílmicas. Essa que é para mim uma menina, uma irmã mais nova, é a responsável pela minha entrada na escola de cinema. Axé, irmã!
Milena é uma força, Milena é uma artista, Milena Manfredini é uma filha de Oyá e será o vento que vai alça-la ao lugar que eu já pofetizei que ela merece. A notoriedade mais respeitosa no campo das artes visuais.
Na minha colina de novembro convido todos a essa viagem no universo dessa cineasta que como ela mesma diz faz filme para quem ama!
Epahey, cineasta das oferendas fílmicas!
Como você se vê no mercado audiovisual
Num cenário sem políticas públicas, eu me vejo à deriva. Me abraço às possibilidades que surgem, realizando projetos independentes. Tenho dois projetos, um projeto de série e outro de longa, sendo este último, inscrito num laboratório. Tenho buscado criar estratégias possíveis de amadurecimento dessas ideias para quando for possível realizá-las num Brasil que ainda não existe.
Nós ainda temos dois anos muito duros pela frente, então, é viver um dia de cada vez. Principalmente para nós, que somos mulheres pretas. Uma coisa é o cenário que as realizadoras e os realizadores brancos enfrentam e a outra coisa é o que sempre enfrentamos, desde que o mundo é mundo, enquanto comunidade em se tratando de oportunidades, porque o sentimento de estar à deriva, de não ter perspectivas reais de apoio e financiamento — ainda mais agora com a ANCINE parada — para nós é ainda mais pesado. Vide os tão conhecidos dados dos estudos publicados pelo dossiê de gênero e raça da ANCINE. No qual é comprovada as disparidades de acessos a financiamentos e distribuição de filmes em salas de cinema quando se faz um recorte de gênero e raça.
Não dá para falar da perspectiva no audiovisual brasileiro sem historicizar e racializar a discussão. No Brasil, nós temos um grave problema que é não termos políticas de Estado e sim políticas de governo, ou seja, projetos e iniciativas não asseguradas em leis, mas sim de acordo com o governo em vigor. Encerrada determinada gestão, perde-se tudo o que foi conquistado. E isso é muito grave e estamos vivendo esse contexto de desmonte muito em detrimento dessa fragilidade. É muito difícil vislumbrar um futuro levando em consideração esse país que não tem e nunca teve uma política de Estado forte.
O Brasil definitivamente é o nosso abismo
Relembrando sua infância e os momentos mais significativos da sua construção até aqui, fale sobre como as artes entraram na sua vida. Como foi o seu desenvolvimento artístico?
Desde pequena! Eu sempre fui a esquisita da escola e por isso eu acabava abraçando o campo das artes. Fui criada cercada de pessoas muito mais velhas. Por essa razão, as minhas referências artísticas sempre foram influenciadas por essas convivências. Eu me lembro de uma vez que levei para a escola um CD da Elis Regina, que era da minha avó, e a galera riu de mim porque eu ficava cantando e explicando as músicas. Muitas vezes eu olho pela perspectiva espiritual e acho que tem uma conexão, mas pensando racionalmente também acho que o racismo tem muito impacto nisso porque as artes, o cinema, a música era uma maneira que eu encontrava para me proteger e criar um mundo para mim, já que o ambiente escolar foi tão violento — principalmente para nós, crianças negras — mas eu sempre tive esse fascínio pelas artes. A música entrou primeiro na minha vida, até hoje eu não passo um dia sem ouvir música e logo em seguida o cinema chegou por conta da música, das referências que ela trazia.
“Acredito que meus filmes falam de afeto. Eu não consigo me imaginar fazendo filme sobre algo ou alguém que eu não ame”
O que que tem de você nos seus filmes?
Nossa, tem muito. Todos os filmes falam e revelam muito de nós. Eu acredito que o cinema é um processo. Eu não costumo romancear o cinema, não. O cinema é um ofício que requer muito trabalho, dedicação, tempo e entrega. Eu costumo dizer que cada filme meu é um filho, ou seja, um parimento, dói, a gente sente contração, lateja e num determinado momento nasce para o mundo. Me questiono sempre se o percurso e os caminhos que estou delineando irão me levar a algum lugar. Por mais que meus projetos sejam híbridos e eu trabalhe muito com elementos de ficção dentro das minhas narrativas, sempre elejo personalidades as quais eu desejo homenagear, para quem eu gostaria de endereçar minhas oferendas fílmicas. E eu fico muito preocupada se o que eu estou pensando vai estar à altura da grandeza dessas pessoas, geralmente é bem difícil, enquanto processo. No filme do Bispo (Eu Preciso Destas Palavras Escrita, 2017) tem muito um olhar meu de menina, de encantamento frente a essa figura majestosa que é o Bispo do Rosário. Percebo esse filme como uma declaração de amor destinada a esse artista que foi tão determinante na minha trajetória. Neste projeto eu reconheço muito de mim, por exemplo, na presença de Dona Regina, enquanto personagem, uma Yalorixá que, de acordo com alguns relatos da tradição oral, foi do mesmo quilombo de onde veio o Bispo. A maneira que ela se faz presente no filme, a presença dos Orixás, das divindades negras, das manifestações culturais… eu olho para aquelas imagens e me vejo muito nelas.
E o Gil, enquanto inspiração e artista, sempre acompanha o processo de elaboração dos meus filmes. No filme do Bispo tem a música Lamento Sertanejo, que foi uma canção que me acompanhou muito ao longo do processo de escrita do roteiro. Eu acredito que neste filme tem o meu olhar de contemplação, de encantamento com as referências culturais e folclóricas que permeiam a obra do Bispo, essa dimensão do Candomblé que em algumas obras também está presente no trabalho do Bispo e na admiração que tenho a figura do Gil. No (Camelôs, 2018) tem uma grande admiração minha expressa e endereçada aos camelôs da cidade do Rio de Janeiro que foram o meu primeiro cinema, muito antes d’eu poder vivenciar a experiência de uma sala de cinema propriamente dita. Eu peguei Japeri (ramal de trem) a minha vida toda e quando eles entravam nos vagões para mim era a própria expressão artística! Eu tento trazer para a discussão do filme o quanto esse passado e essa ressonância colonial está muito presente, ainda hoje em determinados lugares sociais. Quando incorporo as imagens de arquivo, em contraponto com os personagens que são majoritariamente negras e negros isso revela muito das estruturas desse país e do racismo estrutural que faz com que ainda hoje pessoas negras, em sua maioria, estejam em postos de trabalho informais. Esse filme, ao mesmo tempo é uma tentativa de retribuir tudo que eles me deram. Muitas vezes, quando eles entravam majestosos nos trens e nos ônibus eu não tinha um real para comprar uma bala, mas ainda assim, eles estavam ali de corpo inteiro me dando muito mais do que eu podia retribuir. Na minha percepção, e eu busco expressar isso no filme, eles são os grandes artistas da cidade! Acho que no Camelôs tem esse meu gesto de homenagear, mas sem romancear o ofício, de entender as complexidades em torno dele.
No filme de (Mãe Celina de Xangô, 2020), também é um filme de amor. É um filme em homenagem a minha Yalorixá. É um filme feito por alguém que ama muito sua sacerdotisa e que eu mais uma vez tenho a possibilidade de contar com uma canção do Gil nesse filme. Dessa vez, ele cantando a canção Kaô, destinada a Xangô, Orixá da minha mãe de santo. Esse filme é muito significativo para mim. É um projeto que eu espero fazer circular presencialmente, já que ele foi lançado recentemente no Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul virtualmente em função da pandemia que estamos sofrendo.
O projeto (Guardião dos Caminhos, 2019) é um filme oferenda em homenagem ao Orixá Exu, tão simbólico e determinante em nossos cultos e práticas, pois é o mensageiro, é o responsável pela comunicação, inclusive com os outros Orixás. Sem Exu não há comunicação. Meu desejo com esse filme é expressar meu respeito e reverência a essa divindade, ainda hoje, tão demonizada e perseguida em nossa sociedade. Esse filme também é uma tentativa de fazer com que as pessoas compreendam a beleza e a grandiosidade dele em nossa cosmogonia. E para realizá-lo contei com a consultoria espiritual de Mãe Celina de Xangô, que foi determinante para construirmos este trabalho.
O filme realizado a convite do IMS (De um lado do Atlântico, 2020) representa o meu respeito e reverência ao quilombo urbano que é Cais do Valongo, lugar que eu reconheço como meu ponto de chegada, lugar que eu reverencio e para onde vou quando preciso me entender e buscar respostas. Sento lá e fico tentando ouvir o que aquele lugar tem para me dizer.
Acredito que meus filmes falam de afeto. Eu não consigo me imaginar fazendo filme sobre algo ou alguém que eu não ame.
Pergunto a Milena se ela tem ideia de como transforma com seus filmes a leitura das realidades para além do olhar eurocentrado ao qual fomos submetidos e cito Camelôs como um filme que mostra que essas pessoas foram as primeiras a implantar o marketing como ferramenta de venda, sem nenhuma incursão na academia formal, por exemplo. Ela responde: “Sim, eu concordo, o nosso povo historicamente sempre criou estratégias inventivas e criativas de sobrevivência. Descendemos de homens e mulheres criadores. Também acho importante frisar que eu não estou inventando roda nenhuma nos filmes que desenvolvo. Tanto o Cais (filme em processo de montagem, 2021) quanto o filme De um lado do Atlântico eu me inspirei no cinema de Zózimo, em especial seu filme Pequena África. Quando eu soube que estrearia o filme de Mãe Celina na mesma sessão que o Pequena África para mim foi uma honra. Eu estou dando continuidade aos caminhos abertos por pessoas como o Zózimo, por exemplo. Se a gente hoje pode ser cineasta é para dar continuidade a uma discussão que Lélia Gonzalez, Beatriz do Nascimento e tantas outras antes de nós iniciou. Elas e tantos mais velhos, que mesmo não sendo cineastas, foram e são fontes preciosas de conhecimento, de onde eu me alimento, me fortaleço e alimento o meu cinema. Eu não abraço nenhum discurso de genialidade. Eu devo muito e me espelho muito nos que começaram antes de mim! Lélia Gonzalez e Zózimo são o meu farol”!
“Para essa nova geração do cinema negro eu aconselharia a fazer o que eu fiz que foi e é me espelhar nas minhas mais velhas…O caminho é olhar para as nossas”!
Qual a sua perspectiva de futuro pela ótica de mulher preta e cineasta e o que você diria para quem está começando, assim como você começou há alguns anos atrás?
Pergunta difícil! Também permeada de uma grande responsabilidade… É muito pesado falar para não desistir porque a vida diz “não” para gente todo dia, principalmente para nós, pessoas negras, e a gente vai criando estratégias, como os nossos antepassados, de como habitar o mundo e o campo do cinema. É um cenário muito difícil. Muito em função do que a gente está vivendo hoje num contexto político de Brasil.
Lembro a Milena a perspectiva africana da ciclicidade e peço para ela repensar a resposta e um vento — que só pode ser o de Oyá, nossa Orixá de cabeça — clareia as ideias de nossa cineasta e as palavras surgem, assim, como se vindas no vento
Ah, tá! Sim, eu acho que, nós enquanto comunidade, enquanto mulheres negras, a gente abriu e continua abrindo muitas frentes. A gente tem mulheres que estão aí pautando a agenda do cotidiano. Então, eu vejo com otimismo por causa de mulheres como você (ela se refere e mim, que escrevo essa coluna. Referência essa que agradeço imensamente!), na verdade. E eu acho que o que foi iniciado e o que a gente vem dando continuidade por meio das gerações, o fato de termos alcançado determinados postos e sermos reconhecidas como as profissionais que somos, eu acho que quanto a isso não tem como voltar atrás! Por mais que queiram fazer isso em termos de política, desmantelando o país e as políticas públicas, ainda assim não vão conseguir! Eu vejo muita potência em nós, mulheres negras, e em nossa juventude e comunidade negra como um todo. Aí sim, eu sou muito otimista! Para essa nova geração eu aconselharia a fazer o que eu fiz e faço que é me espelhar nas minhas mais velhas. É de criar estratégias de espelhamento entre iguais. É olhar para gente e ser ver, se inspirar a ser. O caminho é olhar para as nossas!