O arroz presente na memória e ausente da cesta básica

Como o alto preço do arroz aprofunda o racismo nutricional

5 min readSep 16, 2020

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Eu nasci no interior de Minas Gerais, em uma cidade de pouco mais de 45.000 habitantes. De lá trago memórias de uma avó merendeira que abria as portas de casa e sustentava oito filhos cozinhando na escola e para fora. Ela vendia o “pão cheio”, recheado com linguiça e queijo produzidos localmente. Assim como minha avó, minha mãe sempre fez comida para muitas pessoas e mandava marmitas para amigos meus e de minhas irmãs, para a nora e os genros e quem mais chegasse para sentar-se à mesa. Sempre que nos reunimos em sua casa, o arroz fresquinho é certo. Acompanhado por um ovo com gema mole e salada de tomate, é um dos meus pratos prediletos. Hoje, essa refeição de valor afetivo tão importante para mim e para milhões de brasileiras e brasileiros não tem o mesmo sabor. A presença do arroz na cesta básica está ameaçada devido à alta nos preços, a maior alta acumulada desde 2008. Um pacote de cinco quilos, normalmente vendido a cerca de R$ 15, chega a custar R$ 40.

Diante desta situação de insegurança alimentar, o presidente da República, Jair Bolsonaro, pediu que por “patriotismo” os supermercados baixassem os preços, ignorando a responsabilidade do Estado brasileiro de interferir nos preços e na política de estoque. Num discurso genocida, autoridades públicas afirmam que a alta se deve ao pagamento do auxílio emergencial, que foi reduzido à metade no começo deste mês. Façamos uma leitura honesta do cenário. Uma família que sobrevivia com um salário mínimo antes da Covid-19 e que perdeu trabalho e renda com a pandemia, consegue sobreviver com apenas R$300 de auxílio emergencial? Consegue aumentar seu consumo de alimentos? Numa sociedade que não garante moradia digna, saneamento, saúde pública gratuita e universal e alimentos seguros, o valor pago, além de irrisório, coloca milhares de famílias em insegurança alimentar e situação de miséria.

De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o preço da cesta básica aumentou em 13 das 17 capitais no mês de agosto, custando uma média de R$500. Como solução, Bolsonaro propôs ainda aos supermercados a venda do macarrão como substituto do arroz. Eu cresci ouvindo à mesa a palavra “sustança”, comendo mandioca com açúcar no lanche da tarde e vendo panelas de arroz e feijão alimentarem muitas pessoas, principalmente na merenda da escola pública onde estudei em Minas Gerais durante o ensino fundamental. A posição de Bolsonaro desconhece esse Brasil. Segundo o Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (Ipea), em agosto, a inflação de famílias mais pobres (cuja renda domiciliar é menor do que R$ 900) teve variação de 0,38%. São essas as famílias cujas crianças crescem à base do arroz e feijão dado na escola. No mesmo período, a taxa percebida pelas famílias mais ricas (com renda maior do que R$ 9 mil) foi menos, de 0,10%

Somado a isso, um estudo do IBGE de 2013 apontou que 11,5% população negra vive em situação de insegurança alimentar grave; entre os brancos o percentual é de 4,1%. Podemos aqui reconhecer um caso de nutricídio, conceito proposto por Llaila O. Afrika. Em tempos de pandemia, é fundamental a garantia da segurança alimentar e nutricional da população. As pessoas, por um lado, perdem o emprego e a renda e, por outro, não têm acesso a alimentos seguros e saudáveis que possam fortalecer seus sistemas imunológicos. Torna-se cada vez mais comum que os alimentos ultraprocessados com alto teor de sódio, como mortadela e salsicha, tenham preços mais baixos que o arroz e o feijão, por exemplo. Nesta lógica identificamos o racismo nutricional, uma vez que a população negra é a mais afetada por doenças ligadas à má alimentação, como hipertensão, e são também as que mais morrem por coronavírus, em índice cinco vezes maior que as pessoas brancas, como revela a análise dos boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde feita pela Agência Pública.

Diante desta situação, quantas mulheres terão que deixar de ajudar a sua comunidade dividindo em marmitas quantidades extras de arroz com feijão? Quantas crianças terão seu direito à alimentação segura negado em suas escolas e casas? É preciso apontar respostas para esses questionamentos, ao invés de simplesmente substituir tudo por macarrão. É preciso apontar e reforçar outras respostas para o futuro. Respostas em defesa da vida, como a agricultura familiar e a produção agroecológica popular. Valorizar a produção local em uma rede de economia solidária, na cidade e no campo, fora das estruturas extrativistas que ampliam desavergonhadamente as suas fronteiras biomas brasileiros adentro. Isso significa, também, questionar a ideia de investimentos em grandes obras como políticas de infraestrutura, pois isso apenas favorece a monocultura e faz de nossos sistemas viário e marítimo voltados para atender ao escoamento dos produtos do agronegócio por exportação, aumentando o uso de agrotóxicos, o desmatamento, a grilagem de terra, o etnocídio. São essas grandes obras que promovem remoções, poluição, barragens, derramamento de petróleo e lama, invasão de terras quilombolas, indígenas e ribeirinhas. Precisamos defender uma política de segurança alimentar e nutricional comprometida com a justiça ecológica e social, por meio de hortas comunitárias, feiras populares, incentivo aos agricultores familiares, equilíbrio ecológico. Voltar a comer das mãos de pessoas que sabem de onde veio o que vai à mesa, que confiam na cadeia produtiva do que dividem com sua família e sua comunidade.

Para silenciar o clamor pela “normalidade” da fome, da miséria e do desalento, aquilombemos pelo direito à terra, a alimentos seguros e à moradia. No bater de panelas, no fogão a lenha de minhas avós, das marmitas compartilhadas e no cheiro do arroz fresquinho com feijão, evoco minha ancestralidade nesse texto, ansiando por um outro mundo. Um mundo que ecoa as escrevivências e obras da poeta e escritora Carolina Maria de Jesus que proclama: “Quem inventou a fome são os que comem”.

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Coletivo Pretaria

Written by Coletivo Pretaria

ACERVO DE COMUNICAÇÃO DECOLONIAL, INTERSECCIONAL, ANTIRRACISTA, CIDADÃ E COMUNITÁRIA ATUALIZADO POR MEMBRES DO COLETIVO PRETARIA. UM PROJETO DO PRETARIA.ORG

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