O Cronista do povo brasileiro, O SAMBA, pede passagem
O SAMBA sempre vence, o SAMBA sempre vencerá
Que caralho é isso de chamar o Chico Buarque de ‘maior compositor brasileiro’? Isto não é mais a terra de Alberto Nepomuceno, Hekel Tavares, Heitor Villa-Lobos e Carlos Gomes? Compositor é uma coisa, sambista é outra. Chico é apenas um sambista que comprou um dicionário de rimas. | Olavo de Carvalho (2015)
O samba é a coisa mais importante na cultura brasileira. | Zé Luiz do Império Serrano (2019).
Olavo de Carvalho é, dizem, além de filósofo, escritor, jornalista, ensaísta e conferencista. Zé Luiz do Império é compositor, gênio da música popular brasileira, que se sustentou como técnico em telecomunicações para nas brechas poder se dedicar a sua arte; como todes pretes que lidam com arte costumam fazer. Se você é preto(a) e não precisou de um emprego considerado formal para poder se dedicar a sua arte, saiba, és privilegiado(a), sim!
Um diz que o samba e nada são a mesma coisa e outro diz que o samba é o produto mais significativo da cultura brasileira. Poderia aqui traçar paralelos, provar por A+B que é sandice o que diz esse senhor Olavo, mas, tamanha seria a perda de tempo, que prefiro partir do pressuposto de que o samba sempre vence! Vence porque é maior e melhor cronista da vida cotidiana do(a) brasileiro(a).
Vamos imaginar um papo no bar com seu Samba e perguntar quem Ele chamaria para narrar, por exemplo, a felicidade do(a) morador(a) ao ouvir o carro do ovo anunciando “40 ovos por 10 Reais”? Zeca — dando voz à composição de Marcos Diniz e Rosania Alves — faz isso magistralmente:
A galinha chorou, chorou, de felicidade/ Chegou o carro do ovo para fortalecer nossa comunidade”. Aliás, Zeca Pagodinho, se juntando a Almir Guineto até hoje estraçalham corações com a magistral Lama nas Ruas: “Se há tanta lama nas ruas/ E o céu é deserto sem brilho de luar/ Se o clarão da luz, o teu olhar vem me guiar/ Conduz meus passos por onde quer que vá…
Jorge Aragão e os parceiros Paulo Cesar Feital e Flavio Cardoso, também não ficam para trás, não é, seu Samba? Olha essa:
Depois não vai dizer / que a gente se perdeu / E nem me perguntar / Como isto aconteceu / A gente dava nó / Ninguém foi mais feliz / Não tinha amor maior / De sampa a São Luiz / Não teve amor maior / Ninguém foi tão melhor / Como é que eu vou esquecer…você / Meu desejo vai nesse avião, minha alma fica / Deito em suas mãos o coração e uma cantiga / Cuida bem do amor do meu perdão e das meninas / Deixa o céu no chão e Deus por perto / Quando se tem paz tá tudo certo / Minha estrela que ninguém alcança / Me abraça criança / O amor é só pra quem merece / E por isso pede que eu regresse / A saudade é o mesmo que uma prece de amor…
Os dedos pegaram pressão e eu só quero saber de escrever para provar que o ilustre convidado do meu texto é pau para toda obra, é o maior e melhor contador de história e um dos mais potentes educadores que eu conheço. Foi Clara Nunes que me ensinou as saudações aos Orixás e o sincretismo religioso brasileiro no trecho da música Guerreira, de João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro, na qual ela, macumbeira de primeira, saúda o panteão africano:
“Salve o Nosso Senhor Jesus Cristo, Epa Babá, Oxalá!/ Salve São Jorge Guerreiro, Ogum, Ogunhê, meu Pai!/ Salve Santa Bárbara, Eparrei, minha mãe Iansã!/ Salve São Pedro, Kaô cabecilê, Xangô!/ Salve São Sebastião, Okê arô, Oxóssi!/ Salve Nossa Senhora da Conceição, otopiabá, Yemanjá!/ Salve Nossa Senhora da Glória, oraieiê, Oxum!/ Salve Nossa Senhora de Santana, Nanã Burukê, Saluba, vovó!/Salve São Lázaro, atotô, Obaluaiê!/ Salve São Bartolomeu, arrobobó, Oxumaré!/ Salve o povo da rua, salve as crianças, salve os preto véio Pai Antônio, Pai Joaquim de Angola, vovó Maria Conga, saravá!/ E salve o rei Nagô!”
O senhor, seu Samba me ensinou também que lugar de mulher é no seu território quando eu vi Tia Doca conclamar suas pastoras para entoar sambas que sem as mulheres não faziam — e não fazem — o menor sentido. Também, olha só quem é a autora do rabisco: DONA IVONE LARA e Hélio dos Santos!!!
…Nem ao menos em pensamento/ Tive alívio em minha dor / Sofri muito por querer/ Ser feliz com teu amor/ E alimentei uma ilusão/ Dentro do meu coração/ E hoje vivo tristonho/ Por resignação …Laia, laia, lá lá lá lá lá lá lá lá…
Esse contador de história que é o Samba também entende de métricas e poesias como ninguém. Artesão da melodia como Cartola até hoje não se vê por aí! O exercício de fechar os olhos e ouvir Autonomia é simplesmente…:
Ai! Se eu tivesse autonomia/ Se eu pudesse gritaria/ Não vou, não quero/ Escravizaram assim um pobre coração/ É necessário a nova abolição/ Pra trazer de volta a minha liberdade/Se eu pudesse gritaria, amor/Se eu pudesse brigaria, amor/ Não vou, não quero.
Se a gente encomendasse para esse cronista o assunto saudade, olha o que Ele poderia nos dar.
Saudade/ Veio à sombra da mangueira/ Sentou na espreguiçadeira e pegou no violão / Cantou a moda do caranguejo / Me estendeu a mão prum beijo / E me deu opinião (opinião, opinião) / Depois tomou um gole de abrideira / Foi sumindo na poeira / Para nunca mais voltar / É isso aí, ê Irajá / Meu samba é a única coisa que eu posso te dar. | Wilson Moreira e Nei Lopes
Aliás, seu Olavo de Carvalho, falando de Nei Lopes e Wilson Moreira me veio um gosto de luta, de protesto — as vezes de sangue, algumas de Glória. Por isso, queria fazer um pedido especial ao cronista homenageado — melhor escritor que o senhor, sem a menor sombra de dúvida — , para nos mostrar com quantas estrofes se faz um samba de protesto. Seu samba, fique à vontade, a escrita é toda sua:
Negro acorda é hora de acordar / Não negue a raça / Torne toda manhã dia de graça / Negro não se humilhe nem humilhe a ninguém / Todas as raças já foram escravas também / E deixa de ser rei só na folia e faça da sua Maria uma rainha todos os dias / E cante o samba na universidade / E verás que seu filho será príncipe de verdade / Aí então jamais tu voltarás ao barracão. | Candeia
Resista que o dever do artista é resistir / Pra não morrer vivo nem cativo sucumbir / Faça da emoção a sua profissão de fé / Trate a inspiração como um botão de um bem-me-quer / Mentes e pincéis, rimas, cinzéis e violões / A serviço sempre das mais belas intenções / Nem reis nem barões comprarão a consciência / De quem faz arder a chama da resistência / Na sua pintura pinte um retrato de Deus / Na arquitetura erga vários coliseus / Mas nunca se esqueça que do velho nasce o novo / E todo poder só é real se vem do povo. | Zé Luiz e Nei Lopes
Música tem que fazer sentido para quem ouve, quem sente. A arrogância do sistema racista, que gera privilégio para uns enquanto para outros gera perdas e sofrimentos, legitima posicionamentos como esse do senhor Olavo, que mesmo sendo de 2015, reverbera até hoje. SAMBA é patrimônio brasileiro por ser a maior representação da nossa cultura. O que o Brasil tem de único vive no popular, no cotidiano, nas periferias, na NEGRITUDE.
Obrigada ao Senhor, seu SAMBA, por nos devolver diariamente a alegria, a poesia e a esperança de um novo amanhã! Se me permite uma singela homenagem, te dedico as estrofes de “Seja Sambista Também”, dos teus pupilos Arlindo Cruz e Sombrinha. E sigamos sambando!
Não, negligência não
Se for apanhar meu violão
Cuide dele com carinho
Toque nas cordas macio
E tente cantar samba
Sei que o início
Até pode ser difícil
Mas fazendo um sacrifício
Será bem recompensadoPois o samba marca como um giz
É eterno porque é raiz
Pois o samba marca como um giz
É eterno porque é raizNão quero dizer que viver é só sambar
Mas sambar é viver
É saber se encontrar
Só o samba faz a tristeza se acabar
Só o samba é capaz desse povo alegrarSer sambista é ver com olhos do coração
Ser sambista é crer que existe uma solução
É a certeza de ter escolhido o que convém
É se engrandecer e sem menosprezar ninguémAconselho a você que seja sambista também
Aconselho a você que seja sambista também
Aconselho a você que seja sambista também