Moïse Kabagambe

O negro lá e o trauma daqui

5 min readFeb 9, 2022

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no fundo no fundo eu sabia
sabia que minha casa deitava raízes
nas ondas de lá do atlântico.

sabia que meu lugar, meu umbigo,
pertencia a terras distantes,
na costa ocidental africana.

ali onde é hoje gana, costa do marfim,
angola, guiné-bissau, benin, nigéria…
eu mesmo nem era sozinho
nações inteiras me reinavam.

havia um pouco de balanta, ovibundo,
fon, iorubá, igbo, cabinda, fula, quiloa,
mandingas conspiravam comigo.

sei nem traduzir o perfume das terras
dos meus ancestrais,
aprisionados, capturados,
violentamente sequestrados,
desumanizados no chão
fétido dos tumbeiros!

um sonho me gravitava fazia tempo
nos entretantos do devaneio
pisava novamente
aquelas terras de baobás gigantes,
donos da estrada, donos da vida.

lá, neste lugar,
minha pele forrava-se preta
de uma beleza azul, quase marrom
e acendia mais luzes que todos
os sóis juntos!

desconhecia tudo isso que é dor aqui,
esses olhares e gestos
cheios de preconceito e racismo.

minha casa, o meu fundamento
era o espírito inteiro.

corpos, desejos, angústias, as vontades
todas dessa gente negra que ri,
que chora, que dança, que se ilude,
que voa, que goza, que vive enfim!

hoje somos muitos os sonhadores,
somos muitos as sonhadoras.
nas universidades, nos protestos de rua…
nas folias do carnaval, na produção da utopia que
não tem fim e insiste em renovar-se todo dia…

aqui minha alma é a chuva, que molha a terra,
que semeia o amanhã,
que faz verdejar esperanças…

nesse hoje, nesse agora,
infinitamente
negro-africano.

Reproduzo na íntegra a poesia que abre e fecha o documentário O lá e o aqui (2017) do finado e querido Sandro Lopes para iniciar minhas reflexões. Aos poucos retornava a rotina de trabalhar e produzir depois das merecidas férias de janeiro de qualquer professor. Apesar do turbilhão de emoções que a vida é sentia um certo grau de satisfação com o então retorno. Decidindo o que escreveria na coluna desse mês pensei em comentar sobre a angústia e o sofrimento que senti ao assistir a série Them da Amazon Prime Video, o que de fato já foi muito bem dissecado por meus colegas críticos. Pensei em escrever algo num tom de celebração, dada a proximidade das festividades do centenário da semana de 22 agora em fevereiro. Cogitei em comemorar a existência negra dos anos 20, inspirado pelo modernismo negro da FLUP, mesmo com o apagamento da história oficial. Já que costumamos nos recordar mais da dar ao invés do que nos alegra, seria interessante essa invertida. Infelizmente, a dor é um bom remédio para a memória. Mas não deu. O Brasil não deixa e nos obriga a não ser felizes.

O caso do jovem Moïse me impediu de escrever sobre outra coisa. Organizo essas palavras aparentemente uma semana após seu brutal assassinato. Espero que quando este texto chegue aos poucos que me leem que estejamos confortados, ao menos com a justiça.

Porém, enquanto isso não acontece divido algumas reflexões sobre como o brasileiro, sobretudo o carioca no seu literal sentido — casa do branco no antigo tupi —, é ingrato e ignorante com sua herança africana. Os bantos, especialmente os bakongos, grupo etnolinguístico que ocupa os atuais Congos e Angola (sim, há países chamados Congo) são os principais engenheiros e arquitetos do que podemos chamar de cultura carioca hoje, e que vão muito além de nosso vocabulário. O carisma, a esperteza e o carinho dos cariocas têm origens nas tradições bantas que encantavam, caminhavam e abraçavam o outro e a diferença. A capacidade de viver bem a vida, de simpatizar com o que não conhecemos e criar lar para aquele que é bem vindo são valores e costumes muito bem prezados pelos povos de origem banta. Mas nem só de dengo vive o banto, podemos dizer que até a marra e a bravura do carioca tem suas origens na África bantofônica, pois os quilombos, instituições guerreiras de resistência vem de lá. Temos exemplos mais concretos na imaterialidade de nossa cultura também: o batuque do samba veio do Congo, a sincope da bossa nova veio do Congo, o remelexo da música pop veio do Congo, o batidão do funk veio do Congo, a riqueza do Rio de Janeiro e o restante do Brasil foi feita por africanas e africanos que hoje tem a nacionalidade de congoleses.

O documentário de Sandro Lopes nos apresenta a alguns herdeiros desse vasto repertório cultural, político e econômico de origem africana. Imigrantes de África, sejam estudantes ou trabalhadores, tem o direito de bem viver em nosso país, os negar isso é virar as costas para a história. Porém, ao invés de serem bem recebidos, muitos destes indiretos herdeiros históricos são rechaçados com doses nada homeopáticas de racismo e xenofobia. Não de forma tão brutal como nosso camarada Moïse, pois estes apesar dos pesares ocupavam disputadas cadeiras no ensino superior. Assim, o Brasil se desmarcada como um péssimo anfitrião. Ignorantes e ingratos brancos que tem suas casas no Rio de Janeiro e em outras regiões do Brasil — como vemos em outro documentário Negro lá, negro cá (2015) — não respeitam os distantes antepassados daqueles que originaram as características e qualidades que tais brancos tanto se orgulham.

A realidade de pessoas negras no Brasil é traumática, talvez até pior que o terror das ficções estilo Them. O cinema nos faz refletir e mesmo com a festa espantando a miséria, não há pão e circo que nos acalente agora. A única celebração acontecerá quando o circo definitivamente pegar fogo e os que se fazem de palhaço paguem o que devem. Não podemos mais acreditar em falácias como a camaradagem brasileira com estrangeiros, a inexistência das desigualdades raciais e até um suposto racismo reverso. Que a justiça seja feita e os verdadeiros herdeiros sejam respeitados. O único jeito dessa cidade ser realmente maravilhosa é aceitando de vez o seu encanto africano.

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Coletivo Pretaria
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