Grafite “Orí” — “A raiz negra que sustenta é a mesma que floresce”, de Criola (Tainá Lima)

O problema é a raiz

6 min readMar 23, 2020

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Aos 5 anos foi a primeira vez que me sentei numa cadeira de salão, e não era para cortar as pontinhas do cabelinho ainda de criança. Era para alisar os cabelos.

Estamos falando do Rio de Janeiro da década de 80, quando nem se pensava em geração tombamento. Deixar os cabelos crescerem naturais era característico de falta de cuidado, desleixo.

Não era por maldade ou gosto que minha mãe fazia isso, essa escolha era em primeiro lugar por proteção, porque ela sabia que com os cabelos alisados eu chamaria menos atenção para a minha origem e com isso sofreria menos os efeitos do racismo.

Na maioria das famílias negras com alguma condição, alisar os cabelos era uma das primeiras opções de cuidados com a beleza para mulheres negras.

Mesmo depois de tanto tempo, ainda sinto as lágrimas que desciam do meu rosto e consigo lembrar do processo doloroso que era.

Dali em diante, nunca mais deixei de ter aquela rotina, de 3 em 3 meses lá ia eu, sentar na cadeira do salão para retocar a ‘raiz’. Em algumas fases da vida, essa rotina ficou mais ou menos intensa.

Essa frequência com que eu deveria retornar ao salão, era para esconder a raiz, e esse era mesmo um dos termos usados em casa e na rua por algumas meninas que passavam pelo mesmo processo. Esconder.

A raiz dos cabelos crespos indicava traços de descendência negra, e era isso que gritava quando o cabelo virgem começava a crescer. E era isso que precisava ser escondido.

Alisar os cabelos era, portanto, negar nossos antepassados, nossa herança ancestral. Cabelo é herança. Uma das falas que me marcaram na série recém lançada na Netflix, “A história de Madame C J Walker”, dita pela personagem principal logo no primeiro episódio.

Madame C J Walker realmente existiu e, como contado na série, foi a primeira mulher negra estadunidense a fazer fortuna por mérito próprio, a partir da fabricação de produtos direcionados ao tratamento dos cabelos das mulheres negras.

Eu aos 10 anos e Tatiana, amiga de infância, em nossa Primeira Comunhão.

Só mais velha, lá pelos meus 9 anos, fui entender os motivos de ter que passar por esses processos de alisamento. Foi quando de fato comecei a ter vergonha e querer esconder a raiz dos meus cabelos, como vinha sendo ensinada desde a infância.

Mais tarde, quando eu já era adolescente, a preocupação de minha mãe se estendia para as oportunidades de futuro, era preciso me deixar mais esteticamente aceitável, o que também significava pensar em socialmente aceitável.

Não vou aqui me alongar contando episódios em que tive machucados no couro cabeludo, e até queda acentuada por conta do uso de químicas cada vez mais fortes, já que com o tempo a química que vinha sendo usada passava a não ter mais efeito. Quero nesse texto tentar ir um pouco além da camada da violência que isso representava.

Por ser uma negra de pele mais clara, muitas vezes com os cabelos alisados ganhava o “status” de morena, que dentro de uma sociedade como a nossa que sempre velou o seu racismo, significava ascensão social. Era melhor ser morena que ser negra. Ainda que isso estivesse longe de significar ser branca.

Como na série, a personagem principal diz em uma de suas falas, que cabelo é poder. Sim, cabelo é poder.

A sociedade foi aos poucos me confirmando o que minha mãe já havia me ensinado desde cedo: estar arrumada pra uma oportunidade de estágio, por exemplo, era necessariamente estar com os cabelos alisados. Os cabelos alisados me conferiam a possibilidade de ser considerada para a vaga, mesmo que nessa disputa — e em todas as outras — eu estaria sempre atrás da mulher branca. Mas, ao mesmo tempo, estaria à frente de outra mulher negra retinta, traço do colorismo, que aumenta a opressão quanto mais escuro for o tom de pele.

Precisamos, nesse momento de ode à representatividade, também ter esse olhar mais sensível. Estamos ainda na fase em que programas de diversidade nas empresas e presença de pessoas negras nas produções audiovisuais ainda se dão em maior número pelas pessoas negras de pele mais clara e, consequentemente, costumam ter os cabelos menos crespos.

“A Redenção de Cam” — Modesto Brocos, 1895

A relação entre as personagens de Madame C J Walker e outras personagens negras de pele clara na série trata dessa ascensão social das mestiças sobre as negras retintas, mas também trata das dores dessas mulheres, na busca por serem o que não são, mulheres brancas. Lembremos da obra “A Redenção de Cam”, do artista espanhol naturalizado brasileiro Modesto Brocos, que reforçava as teorias eugenistas que ganharam força no fim do século XIX, com suporte de parte da Ciência que corroborava com os projetos de embranquecimento da população. Na obra, uma mãe negra retinta comemora ao lado de sua filha mestiça e de seu genro branco, o nascimento de seu neto também branco.

Essa disputa fica ainda mais explícita na relação construída entre a Madame, a heroína, e sua principal antagonista, uma mulher mestiça. A personagem Addie Monroe passa o filme inteiro tentando inferiorizar Madame Walker, a partir da comparação com suas características físicas, principalmente acerca de sua pele mais clara e seu cabelo, considerado mais bonito, por ser mais liso — ou menos crespo — e comprido.

A relação entre elas atrelada às imagens do passado, principalmente da infância de M. Walker, contam muito sobre como a não aceitação de si mesmo vai sendo construída. Num processo de anulação e apagamento, para que se aceite o modelo branco como o modelo a ser seguido, foi se abandonando as próprias referências. E como isso é reforçado pelos meios de comunicação, como acontece na série, em que a primeira peça publicitária produzida para os produtos de cabelo de M. Walker para mulheres negras é uma ilustração de uma mulher com traços mais finos e pele mais clara, feito pelo marido da Madame, um homem negro de pele escura, que argumenta que aquela imagem serviria para aumentar a aceitação do produto e, consequentemente, as vendas.

Da esquerda para a direita: Octavia Spencer, como Madam CJ Walker na série “Self Made”; Cartaz da séria da Netflix; Madam CJWalker ao lado de Octavia Spencer.

A escolha de CJ Walker, marido de Madame Walker, para essa peça, aliada à traição dele no casamento, que também se dá com uma mulher mestiça, reforçam que até no âmbito das relações afetivas essa hierarquia, a partir dos tons de pele, conferirá preterimento às mulheres negras de pele mais escura.

Toda essa construção justifica a busca que muitas de nós viveu, por camuflar todo e qualquer traço que fizesse menção a própria origem.

Ainda hoje, mesmo com uma maior aceitação de nossos cabelos e traços negroides, temos a todo momento que reafirmar posição sobre o orgulho de nossa origem, orgulho que vem sendo construído por mulheres que antes de nós vieram travando suas lutas pessoais e coletivas por aceitação e identidade. Quando é sobre uma de nós, é sobre todas nós.

Fazendo um paralelo entre a saga que Madame C J Walker vive na série, que muito mais do que ficar rica é a saga pela busca de sua identidade, e a realidade brasileira e suas peculiaridades, fiquemos com as palavras de Lélia González, intelectual, antropóloga, política e ativista negra brasileira, que uma vez disse:

Eu, versão 2020.

“A gente nasce preta, mulata, parda, marron, roxinha etc. Mas tornar-se negra é uma conquista.”

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