O racismo obriga a me curar
Nascer em um sistema racista tem tantas camadas de opressão que, por mais que falemos do tema, tem sempre algo mais a ser dito.
E porque dizer tanto, escrever tanto, ler tanto…? Parece que nascemos sempre em busca de algo e essa busca não cessa, porque o racismo, afinal, segue nos tirando pedaço. Comigo aconteceu um processo de me dar conta da falta de pedaços logo cedo. O primeiro pedaço faltante era manifesto e gritante, uma identidade apenas com o nome da mãe.
Por muito tempo esse pedaço foi silenciado e segue desconhecido, faltante. É preciso uma revolução interna profunda para seguir essa busca, muitas vezes assustadora, porque trata de abandono, de descaso. A partir da busca pelo primeiro pedaço, vieram a falta de todos os outros: às vezes latentes, às vezes manifestos, todos gritantes. Partes perdidas de mim que eu precisava reencontrar. Pedaços de uma origem desconhecida, pedaços de família, de história, de cultura, de tradição, de mim.
Ter crescido na zona sul do Rio de Janeiro — território branco — e ter estudado em uma escola pública federal disputado — espaço branco -, também na zona sul do Rio, me fez sentir as faltas mais profundamente. Silenciosamente. Isoladamente. Cresci. Comecei uma faculdade, de Ciências Econômicas, em uma faculdade federal pré-cotas, branca, vazia, inóspita. Mais uma vez senti as faltas profundas, silenciosas, isoladas, nunca faladas. Sempre obrigada a calar.
Não terminei. Precisei trabalhar, a vida seguiu atropelante. Eu segui.
De repente, também nesse processo de vida, uma morte na família pausou tudo. Não foi uma morte qualquer. Foi um processo de um ano de morte, de câncer, acompanhada e compartilhada em família.
Pausei.
Era preciso viver, a fome de vida veio exacerbada, sem mais tempo a perder.
Dessa fome surgiram de novo as faltas, mas agora fui de encontro a elas, sem retroceder.
Fui fazer a faculdade que eu queria, Comunicação Social, teve que ser em uma faculdade particular: encaixes, horários, trabalho, mas fiz, dessa vez até o final.
Às vezes até me pego pensando, se a Comunicação não vem dar conta justamente do silêncio interno de tantos anos. Talvez sim, talvez outra hora volte a isso para entender se faz parte de um processo de cura, que a própria mente me faz querer buscar. Uns vão dizer que é questão de sobrevivência. Será?
De repente, uma caixa de pandora se abre com a chegada das redes sociais.
Benéficas e maléficas, as redes fizeram a distância de oceanos parecerem a distância de uma rua. Parece que nisso o tempo veio e trouxe o continuum. Passado, presente e futuro se misturaram e, pela rede, fui indo no rastro, de pedaço em pedaço. Estavam ali ao meu alcance muitos dos pedaços que eu tanto buscava. Será que eu ia percorrer um caminho de cura? Nesse momento ainda não, eram só pedaços.
Comecei a seguir mulheres negras e pelas mãos delas comecei a ser conduzida dos pedaços. Aos pedaços. Textos e mais textos. Falas e mais falas. Conversas e mais conversas. Lágrimas e mais lágrimas. Mulheres negras me pegaram pela mão, me abriram portas, janelas, me estimularam. Ensinaram-me mais sobre mim do que eu mesma jamais fui capaz de saber.
As faltas foram sendo substituídas por falar, querer falar, sentir falar, poder falar, deixar falar.
Agora, vamos às falas.
De repente, me vejo obrigada a falar, mais uma vez obrigada.
Mais um crime aqui, uma morte ali, mais pedaços por aí, lá vou eu falar.
Mais um racismo aqui, um racismo ali, mais pedaços por aí, lá vou eu calar.
Será que depois de tanto buscar e de tanto encontrar nada mudou? Será que finalmente a tão sonhada cura não chegou? Não há cura, certeza que não, a fome exacerbada é que segue a me guiar.
Mas muita coisa mudou sim, mudei eu. Agora é diferente, carregada de mulheres negras e homens negros, já consigo identificar; está evidente, para mim, que tudo que me obriga tanto a calar quanto a falar, tudo que me obriga é o racismo.
O racismo obriga a me curar.