O Rei Mago Preto
Crônica de Gilberto Porcidonio
Sempre fui o rei mago preto. Sempre que houve um auto de natal na igreja em que eu praticamente nasci, na Freguesia de Jacarepaguá, eu era ele. Pediam para eu ser e eu era. E não era por falta de preto. Eu gostava de sê-lo. Posso dizer que fui rei mago por uns 10 anos. Também já fui Jesus algumas vezes, mas preferia ser rei mago. Me identificava mais com ele do que com Ele, retratado sempre de madeixas loiríssimas e olhos azuis.
O rei mago preto é Baltazar, São Baltazar. Um sacerdote mouro oriundo da chamada Arábia Feliz, que tinha, entre outros, o Reino de Sabá, onde hoje é a Etiópia. Como mouros, africanos e indígenas foram parar na mesma casinha simbólica assim que passaram a categorizar tudo o que é não-branco, Baltazar tornou-se negro. Mas que tipo de negro? Simplesmente negro. Inegavelmente negro. Já viram alguma representação dele de cor claramente clara? Se era indígena, mouro, indiano ou subsaariano, não interessa. Era negro.
O presente do negro rico ao pequeno refugiado pobre foi a mirra, uma resina utilizada pelos profetas e também usada para embalsamar os mortos. Diz-se também que um certo papa passou a justificar a escravidão do negro se baseando na crença de que esse não teria alma. Se o papa realmente o fez, deve ter se esquecido daquele primeiro negro que presenteou seu Deus vivo. Teria ele coragem de escravizar Baltazar?
Mas e daí? Quando eu era pequeno, eu só sabia que Baltazar era rei, mago e preto. E estava presenteando ninguém mais do que o Filho de Deus. Sabe o garoto emocionado com o boneco do Finn sem nem mesmo saber quem ele é? É exatamente disso que estou falando: representatividade.
O mundo, principalmente aqui neste segundo país com mais negros no planeta, ainda não está acostumado a ver gente preta rica ou sequer de classe média. Negros bem vistos em uma sociedade de gente de bens. Negros com renda decente, sem algemas e sem brigarem por alguma coisa jogada de um avião da ONU. O teste do pescoço é a prova mais cruel disso. As coisas mudaram bastante de 2003 para cá, mas avanços maiores precisam ser conquistados. Um dos principais é a questão da representatividade. A primeira novela brasileira que mostrava negros de classe média, “A Próxima Vítima”, é de 1995. Quantas outras houve? A falácia de que o preconceito no Brasil é mais social do que racial vai por terra quando se constata que um policial nunca dá uma dura em alguém perguntando pelo seu contracheque.
Algumas das maiores personalidades negras da Bíblia são um rei e uma rainha: Baltazar e Makeda, a Rainha de Sabá. Se dermos mais destaque ao fato de que o livro mais lido do mundo, que é uma das bases do pensamento ocidental e bode expiatório de todas as tragédias feitas em seu nome (junto do Corão), é capaz de mostrar que o negro não é sinônimo de pobreza, o caminho para debater o preconceito racial, principalmente entre os cristãos, poderia ficar um pouco menos difícil.