Beatriz Lins em ação

Olhares negros em revolta — uma conversa com Beatriz Lins

8 min readJun 7, 2021

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Beatriz Lins é uma carioca-recifense que pesquisa e estuda cinema na UFPE. Atua em diferentes áreas do audiovisual como direção de arte, roteiro, montagem, curadoria e direção de fotografia, área em que nos debruçamos nessa conversa. Em parceria com a diretora Priscila Nascimento assinou a fotografia dos curtas Noite Fria e Ninguém Precisa Saber. Com seu olhar crítico e perspicaz troco com Beatriz algumas reflexões a respeito da imagem de corpos negros no audiovisual.

Como você sente as relações de suas memórias de infância e o seu trabalho com cinema atualmente?

Sou do Rio de Janeiro e me mudei para Pernambuco para estudar cinema. Eu demorei um pouco a entender que gostava de cinema, mas quando criança todas as coisas se manifestavam na minha cabeça como se fossem um filme. Se ouvisse ou contasse uma história eu a imaginava como se fosse um filme. Passei por muitas coisas na vida, inclusive antes de fazer quinze anos minha mãe faleceu e ela era muito ligada as artes. Ela tinha um diploma de atriz, embora nunca tivesse exercido, e possuía uma consciência política que nos incentivava a consumir arte e produtos culturais brasileiros e do mundo inteiro. Então, quando ela veio a falecer comecei a assistir muito mais filmes, mas numa prática de cinefilia mesmo. Era justamente quando dedicava tempo assistindo e consumindo filmes, e artes em geral, que me sentia bem comigo mesmo. Decidi fazer cinema quando me dei conta que seria a única coisa que teria prazer fazendo.

E aí você saiu do Rio para estudar cinema, qual foi o motivo de ter escolhido Recife?

Cara, essa história é bem louca! Na época eu trabalhava num lugar porque precisava trabalhar, mas não era uma coisa que conseguia imaginar fazendo o resto da vida. Nessa época eu saía do trabalho e ia para o cinema ­– tanto na videoteca do Centro Cultural Banco do Brasil como nos cinemas de rua de Botafogo. Por passar a semana assistindo filme me perguntei: ‘porque não faço cinema então?’. Com isso comecei a pesquisar as universidades públicas que tinham curso de cinema e me deparei com cursos em Niterói, Cachoeira e Recife. Na hora que vi que só estudaria numa dessas três: em Recife na UFPE. Já assistia na época muito filme daqui de Pernambuco, então nem pensei nas outras opções. Vim diretão pra cá!

Muito se disse outrora pela branquitude sobre uma suposta dificuldade de capturar a pele negra na fotografia, falando em questão de tecnologias. Até a pouco tempo atrás esse tipo de imaginário ainda persistia. O que pensa sobre essa declaração?

Desde que comecei minha trajetória no cinema venho experimentando o que podia explorar em todas as áreas: já escrevi roteiro, trabalho com direção de arte também, montagem eu faço muito, mas acho que a fotografia é justamente, nesse ponto chave na questão da negritude que me impulsiona a querer fazer mais. Daquilo que vai além do que vemos na composição da imagem. Tem muitos significados que são atribuídos aos corpos negros. Junto com amigos da minha turma de cinema começamos a assistir muitos filmes produzidos e protagonizados por pessoas negras. Percebemos uma diferença entre o cinema que nos era apresentado pela universidade — sempre com uma visão bem imperialista, hegemônica e eurocentrada –, e uma outra linguagem visual em filmes de produções latino-americanos, negras e indígenas que assistíamos.

Nada é difícil de ser filmado. Tudo é feito a partir de um olhar que você coloca ou uma perspectiva que você tem. A perspectiva da pessoa que filma tem que ter um respeito com o que está sendo filmado, principalmente quando falamos de pessoas negras e não brancas. Então precisamos entender que existem composições que não coloquem e reafirmem estereótipos, marginalizem ou inferiorizem essas pessoas as colocando em submissão. Meu trabalho é quebrar com essa lógica de prazer e objetificação.

Por exemplo, tudo parte da escolha da iluminação, posição de câmera, o que será dado detalhe ou não. Sempre penso em criar um contato com as pessoas que serão filmadas para criar, em conjunto, esse processo. Num movimento de sintonia que problematize o que consumimos como cinema justamente para poder romper com essas ideias.

Obviamente temos uma história da tecnologia dos equipamentos, que foram criados a partir de um viés racista, até porque vindo da Europa e Estados Unidos é difícil não colaborassem com algum tipo de privilégio. Então obviamente não se pensava em captação de imagens com detalhes e nitidez para corpos negros. Hoje em dia com o avanço tecnológico e o acesso a aparelhos e equipamentos é impossível que uma pele negra não seja bem filmada. O problema maior é como algumas pessoas usam a tecnologia para filmar e retratar corpos negros.

O filme Noite fria (2020) dirigido pela Priscila Nascimento é um filme que parece abordar diversas questões relacionadas a questão negra. Me conta um pouco de como foi o processo de criação do curta metragem.

Noite fria foi um dos primeiros filmes que a minha turma da faculdade fez. Foi o primeiro filme que fiz direção de fotografia, e na real nem tinha intenção de fazer. Foi mais por um convite da Priscila Nascimento porque ela viu numa disciplina que fizemos juntas que o homem que estava dirigindo junto comigo não me deixava pegar na câmera. Priscila brincou que faria o filme só para que eu pudesse dirigir a câmera.

Priscila inspirada pela LA Rebellion — movimento de cineastas negros dos Estados Unidos da década de 1960–1970 — pensou em fazer um filme sobre pessoas negras em revolta. Então Noite fria era sobre uma mina que se choca com casos de machismo e cria sua própria maneira de vingar isso.

Foi muito louco o processo porque eram as primeiras vezes da maioria da equipe. Por sermos uma equipe negra elaboramos juntos como não iríamos reproduzir nem cair em estereótipos racistas. Foi massa! Demorou muito para ser feito porque é um filme com pouco orçamento, mas conseguimos ter resultado que queríamos.

Ainda mais tendo como referência como a LA Rebellion…

Foi uma coisa que ficamos muito chocados, porque estávamos dentro de uma universidade num curso de cinema e nunca ouvíamos falar dessa galera. Como estávamos estudando história do cinema e sobre essa parte dela não escutamos nada? Tivemos que ter a Janela de Cinema do Recife, ao resolver falar sobre esse tema, para termos acesso a filmes que são quase impossíveis de se achar. Acho que vi os melhores da minha vida lá.

O cinema de Recife é um dos mais inventivos do Brasil atualmente, produzindo e conquistando espaços em festivais e premiações. Como funciona a produção do cinema negro feito por aí?

Aqui em Pernambuco nós temos um edital de financiamento todo ano, que é o Funcultura, pela existência desse edital já existe um estímulo do próprio estado a produção cinematográfica. Nele há uma reserva que é destinada a cotas para pessoas negras e indígenas. Tudo isso foi fruto de uma luta absurda de vários setores do audiovisual daqui. Esse movimento exigia essa cota para impedir que o financiamento à filmes continuassem sendo destinados as mesmas pessoas. Desde que me mudei pra cá em 2016 vejo que cresce a quantidade de pessoas negras aprovando e fazendo filmes. Não contando só com o financiamento, pois muitos fazem seus filmes de forma independente. Ressalto a importância dos editais pois fazer cinema é um trabalho e todo trabalho precisa ser remunerado.

Todas essas produções negras não necessariamente falam apenas sobre a existência do racismo, vemos que são contribuições narrativas de pessoas negras para o cinema pernambucano e brasileiro.

Como fotógrafa e uma pessoa que trabalha com imagens, você acha que, como os griots, podemos contar histórias com as imagens? De certa maneira podemos pensar que elas nos educam também?

Num ponto de vista subjetivo, pensando como a forma imagino as coisas essa contação de histórias acontece na minha cabeça imageticamente. Gosto muito de me comunicar assim.

Já vivi esse paralelo do cinema e a educação em uma medida socioeducativa, o ‘Cartas ao mundão’, onde trabalhei. Lá fazíamos seções cineclubistas e ensinávamos os jovens a filmar. Falo ensinar, mas acho que eles sabiam muito bem fazer isso, nós só facilitávamos esse processo, como por exemplo, ao ajuda-los a montar os filmes também. Um dos jovens tinha uma música que todos os outros cantavam lá na unidade. Precisávamos fazer um filme-carta coletivo mandando uma mensagem, através das imagens, para o mundo. Esse menino queria mostrar sua música e perguntei como é que poderíamos mostrar ela para o restante do mundo. Esperto, ele me disse que só cantando e dançando já seria o suficiente. No ato simples de cantar, dançar e filmar estes meninos já estariam comunicando muita coisa pro mundo. Eles não estariam apenas cantando e dançando, mas sim mostrando as relações que eles criam nesse espaço. Evidenciando quem eles são de alguma forma, sem contar no talento de todos eles. Uma imagem dessa tem o potencial de ser entendida de diversas formas subjetivas.

As vezes pode parecer que sou preciosista do cinema, mas dou muita importância e valor para as imagens, principalmente entendendo que a própria foi utilizada pra nos marginalizar historicamente. No momento que pensamos em ressignificar as imagens e criar as nossas próprias estamos contribuindo para um processo histórico de uma socialização coletiva.

Concordo total, porque é a questão que falei dos griots com a imagem falando do audiovisual com a imagem e o som. Estas têm uma importância gigantesca na maneira como nossa geração conta suas próprias histórias. Como para essas crianças que comentou, elas acabam tendo uma relação entre o socializar e o educar.

A imagem nos ajuda a entender a vida de pessoas em outros contextos. Vou dar um exemplo de um filme que vi recentemente da Yane Mendes, Live delas (2020). No filme Yane está em casa com as mulheres de sua família se arrumando pra ver uma live da cantora Priscila Senna. É um recorte da vida dessas mulheres e tem uma potência incrível porque você está vendo uma outra perspectiva narrativa. Provavelmente você não conhece as pessoas que estão ali, mas ao ver esse filme dá um calorzinho no coração. Principalmente nesses tempos. Tem uma galera contando suas histórias e elas não precisam ser mirabolantes e nem mega importantes. São histórias simples que já tem uma potência incrível.

É o cinema do possível, não precisa ser uma produção gigantesca, mas só de mostrar um recorte do cotidiano assim acho já afeta as pessoas. Elas não conseguem ver o cotidiano delas como algo grandioso porque não é algo que está representado nas novelas ou afins. Elas são negadas dessa representação. É um movimento que acaba tendo muito nas redes sociais hoje em dia com stories e tiktok, são coisas do cotidiano e não dá pra falar que elas não são audiovisuais.

Não dá nem pra diminuir e nem desvalorizar essas tecnologias. Inclusive nessas redes sociais eu vejo a galera fazendo umas coisas incríveis que fico abismada com a criatividade.

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