OPINIÃO CHAPA BRANCA

Coletivo Pretaria
4 min readJun 4, 2021

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Ultimamente, eu tenho citado mais o verdadeiro hino nacional brasileiro — “Negro drama” — do que de costume. Eu já falei em matéria, podcast, live, debates, discussões… Praticamente virou passeio, mas o Brasil 2021 é irresistível. Quando percebo, lá estou eu falando “isso é igual aquele verso de ‘Negro drama que diz….’”, como se estivesse citando algum acadêmico, porque, de fato, eu estou. Desconheço martelada maior no mito da democracia racial do que este totem.

No momento, o verso que mais tem me batido é aquele, já perto do fim da música, em que Mano Brown diz: “Aquele louco que não pode errar”. Pedro Paulo Soares Pereira, intelectual que é, sabe exatamente o que queria dizer e para quem queria dizer quando cunhou essa frase. Em um país anti-ubuntu, o erro de um negro é lido como o erro de todos os negros. Dúvidas? Pergunte qual é a pessoa melaninada que tem coragem de sair de casa sem os documentos. Nós já esperamos a abordagem, os julgamentos e um posicionamento sobre o que, com quem, onde e por que estamos em determinados lugares. Sempre esperamos que alguém nos confundirá com um outro alguém que errou.

E chegamos ao tema do momento: posicionamento. O que me remete diretamente aos tempos das aulas de história na escola. Época em que, na única vez em que se falava sobre a dita “história negra”, era para falar sobre a escravidão. E era nesse momento que, enquanto o professor dizia os horrores da época e e indagava os alunos, todos os rostos da sala de aula se viraram para mim. Todos esperavam sempre alguma opinião, algum posicionamento ou até alguma reação pública minha sobre o assunto, como se eu fosse versado em regime escravocrata de nascença (será que confundiam os anos 80 com os oitocentos?). E todos ficavam muito frustrados quando eu não esboçava… Nada. Nenhuma reação.

Corte temporal e lá estava eu, durante o BBB 21, sendo abordado aleatoriamente, por uma pessoa igualmente aleatória, que me perguntou qual era a minha opinião sobre… Karol Conká. E era só isso mesmo. “Você é a favor ou contra Karol Conká?”. Não era sobre o que ela fez ou deixou de fazer na casa, mas sobre a existência dela. E claro que a pessoa ficou frustrada quando eu não esbocei… Nada. E logo me pularam à memória outros momentos em que, mesmo sem ter uma opinião estruturada sobre o assunto que eu quisesse tornar pública, fui instigado a esboçar a minha opinião como em uma convocação militar. Viu o Carlos Decotelli? Fernando Holiday disse alguma coisa? Sérgio Camargo fez isso ou aquilo? Hélio Lopes abriu a boca pela primeira vez? E aquilo lá o que o Pelé falou? Qualquer outra pessoa negra “polêmica” que abrisse a boca ou fizesse algo “polêmico”, brotava um aleatório que me “ordenava” uma opinião como em uma “reaction” youtúbica mesmo. Mas não para realmente saber o que eu acho. Geralmente, é pelo show da reatividade mesmo. A própria opinião, imorrível, imbroxável e incomível, o perguntante da vez já tinha bem estruturada.

Nunca pediram a minha opinião sobre a questão Israel x Palestina, para dar pitacos sobre a associação direta dos supremacistas brancos com o avanço do neoliberalismo, sobre qual o melhor disco de heavy metal da década e nem mesmo para detalhar a minha tese de como Chaves é um perfeito arquétipo para qualquer aspecto da humanidade. Porém, basta uma pessoa negra “errar” que eu sou cobrado por esse erro e convocado para prestar esclarecimentos. É uma verdadeira CPI (Comissão do Preto Indagado). Por isso é que, ao contrário do que pensa a atriz que só é lida como branca no Brasil (mas essa é outra discussão), não existe pessoa branca verdadeiramente pressionada a dar opinião no Brasil. Por isso, a neutralidade é um privilégio de quem não sofre, de fato e no prato, com as oscilações do eterno cabo de guerra das ideologias.

Bibliografia e iconografia pop para falar da neutralidade, há aos montes, mas eu vou atacar de duas: o “mova-se ou seja movido” da dora milaje Ayo para a Viúva Negra no filme “Capitão América: Guerra Civil” e o bíblico Apocalipse 3:16: “Seja quente ou seja frio, não seja morno, que eu te vomito”. Já comigo, uma vez, eu deixei um sabonete neutro cair nos olhos e ardeu absurdamente. Essa foi a maior lição de sociologia que eu já tive até hoje. Neutralidade branca, nos olhos dos outros, é refresco.

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