OS SUPERURBANOS

Coletivo Pretaria
4 min readJan 7, 2022

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Véspera de Natal, supermercado bem cheio e lá, da fila do caixa que mal andava, eu a vi, chateadíssima. O problema é que o estabelecimento não estava dando conta das demandas desesperadas por pão de rabanada e só liberou uma bisnaga da mesma para cada consumidor. Porém, ela precisava de quatro. A atendente não tinha como “aliviar o lado dela”, conforme a mesma pediu, e essa foi a deixa para a virada de chave. A cara dela, de branca, ficou vermelha, os braços se cruzaram, o nariz empinou e a voz ficou mais ríspida. Dedos para cima vieram na sequência e os mas-como-assim também. Logo se instaurou um panetone de climão dentre os consumidores que, assim como eu, caíram na genialidade de fazer compras de Natal em cima da hora. Porém, sempre tem aquele momento em que a máscara cai (metaforicamente, pois ainda não estávamos em uma pandemia) e libera a verdadeira faceta da pessoa em questão. Enquanto ela deflagrava reclamações mil sobre o funcionamento da suposta “espelunca de quinta”, conforme berrava, ela tentou agarrar o braço da atendente e falou, em alto e bom som, para que todos da fila ouvissem:

“Eu já tive restaurantes, sabia? Agora vai lá e chama a gerente geral que eu vou ensinar ela a fazer a logística de uma operação de Natal. Chama AGORA”.

E essa é a hora em que a reclamante, chapadíssima de razão, se revela, mas não como uma curadora beneficente. Nesse momento, ela é o semideus que, não contente em punir severamente aqueles que vão contra a sua vontade, força os seus servos a seguirem exatamente as suas ordens à vista de todos, seguindo a cartilha da pedagogia do opressor, pois ela própria, ali, era a lei e a ordem. Bem ali, na paisagem onde o Cristo Redentor não está de costas ou ausente da cidade, ela se revela como sendo uma superurbana.

O termo parece engraçado porque é para ser mesmo. Afinal, se, no Rio, existem os suburbanos, o contraposto também precisa ser demarcado. Se, no contexto carioca, subúrbio é aquilo que está afastado do Centro e de tudo o que ele representa — cosmopolitismo, capital, velocidade, decisões políticas, serviços públicos e turismo — “superúrbio” é tudo o que extrapola tudo isso. O superurbano é uma casta acima marcada pelo símbolo do mais: mais investimento, mais renda per capita, mais anos de estudo, mais olhares e, claro, mais branca.

Caso não tenha ficado claro, muito claro, estamos falando diretamente da Zona Sul carioca e, principalmente, da ZS profunda (a pós-Botafogo), onde não basta apenas estar ou morar nela para ser um superurbano. Esse é um título que não pode ser herdado por quem reside em comunidades ou residências populares e que, além de tudo, o torna mais que um cidadão: um supracidadão. É você acima de tudo. Nos grupos de Alerta, por exemplo, que botam qualquer programa policialesco das tardes no chinelo, os presentes ali que comungam da mesma violência contra bandidos — ou seja, qualquer um que não more na região ou apareça portando melanina — se sentem também como donos e herdeiros do espaço público. E esse direito “divino” pode ser resumido em uma frase seminal: “isso tem que valer o IPTU que eu pago”.

A influência dos impostos na psiquê do superurbano também não pode nunca ser menosprezada. Afinal, se os impostos não fossem impostos, eles seriam supostos e ninguém, ninguém, n.i.n.g.u.é.m. obriga um superurbano a fazer algo que ele não queira. Por isso, tudo precisa ser pago em alto e bom som, pois é preciso dizer que está pagando muito caro para se ter o seu quinhão para “morar no lugar onde os Outros passam as férias”. Isso precisa ser exaltado a ponto de que todos achem que os superurbanos sejam os únicos da cidade inteira que, na realidade, estão pagando impostos. Notem bem a diferença entre os brados de indignação quando se sofre alguma incivilidade: enquanto o do suburbano é o “mas eu sou trabalhador”, o do superurbano é “eu pago meus impostos”.

A atual pandemia de Covid-19, importada pelos superurbanos, também reforçou outra grande faceta: eles são muito bonitos. Eles são bonitos demais. Lembram do datadíssimo chamariz de festa chamado “gente bonita”? É sobre eles, que, de tão garbosos, não podem usar máscara na rua por muito tempo. Na academia então, é praticamente um crime eles ficarem com ela certinha no rosto por mais de 10 minutos. Pelo visto, muitos creem que a melhor imunidade para o vírus é o IDH alto.

O superurbano se julga tão mais carioca do que os cariocas que pretende resumir o Rio inteiro apenas em seu território. Racial. E repito, ser um superurbano não é questão de morar no superúrbio, mas de comungar desses mesmos valores acima mesmo que por osmose. Pois é, Drummond. Não existe mais inocente no Leblon e adjacências.

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