OS VOLUNTÁRIOS DA PÁTRIA
A Voluntários da Pátria é uma das ruas mais famosas aqui do Rio. Ela vai do Humaitá, bairro conjunto a Botafogo, na Zona Sul, e termina na Praia de Botafogo. Isso é, além de a rua começar em um bairro batizado com o lugar de uma batalha histórica durante a Guerra do Paraguai — a Passagem de Humaitá — a via mesmo é nomeada em relação a essa mesma guerra. “Voluntários da Pátria” era a unidade militar que o império brasileiro havia criado para reforçar o contingente para guerrear contra o Paraguai. A ironia é que, no início, a ideia era mesmo que a adesão fosse voluntária — com direito até a alforria aos escravizados que participassem do conflito. Porém, logo as províncias se viram obrigadas, pelo império, a ceder homens obrigatoriamente, chegando a ter o alistamento forçado de opositores políticos e, claro, de escravizados cedidos no lugar de seus “donos”.
Mas voltemos à rua. Lá estava eu, passando por ela, por volta de meio-dia, durante o meu desmame lento, gradual e seguro da quarentena, quando percebi que muitos olhares estavam convergindo para uma mesma direção. Aqui no Rio, a gente sabe que, quando isso acontece, é, das duas, uma: assalto ou acidente. Eu resolvo acompanhar os olhares e vejo o que parece ter sido a segunda opção, pois vejo um menino de cerca de 15 anos, de uniforme de escola particular, sentado no meio-fio. O garoto está aos prantos, sem máscara, enquanto os funcionários das lojas próximas estão em seu entorno. Um deles tentava consolá-lo de algo que eu não consegui compreender, mas consegui pescar uma frase de alguém que parecia ser aleatória: “Você não precisa estragar a sua vida.”
Mais à frente, de fora desse cenário, entro em uma loja e ouço os atendentes comentando sobre o acontecido, apenas 10 minutos antes: Um menino entra para lhes pedir troco para uma nota de R$ 50 e, antes de obter a resposta, sai transtornado da loja. Do lado de fora, ele avista uma menina, também estudante como ele, falando no celular e, subitamente, o toma dela. A menina reage, trava a mão, grita, mas ele consegue pegar e sai correndo.
— Por acaso era um garoto de camisa de escola particular? — perguntei para a vendedora.
— Sim! E bem novinho — respondeu a lojista.
— Ah, ele está logo ali na frente. Parece que pegaram ele.
— Ah, graças a Deus! A garota berrava tanto, tadinha…
Corte temporal. Dias antes, eu estava percorrendo a mesma Voluntários da Pátria, que sentiu forte a crise atual. Não há um quarteirão da rua sem crianças ou famílias tentando sobreviver de alguma forma, seja pelo comércio ambulante ou pedindo dinheiro e comida mesmo. Muitos ficam na frente das lojas, onde rapidamente os policiais do Segurança Presente tratam de retirá-los. E foi em um desses momentos, quando cortei por uma das transversais da rua para fugir da aglomeração das calçadas minúsculas, que vi um menino de cerca de 15 anos sendo abordado por três policiais. Ele, que estava com uma caixa de paçocas, jogou tudo no chão e levantava bruscamente a camiseta para mostrar que “não estava com nada de ninguém”, conforme dizia, em um misto de constrangimento e ódio pela situação.
E aqui as duas trajetórias se cruzaram na minha mente: a do ladrão de camisa de escola particular que, após ter roubado alguém na cidade que pendura gente em postes, foi “amparado” pelas pessoas do seu entorno; e pelo vendedor de paçocas que estava precisando provar a três policiais que não havia roubado ninguém. Ambos os garotos têm cores diferentes. Convido-lhes a adivinhar qual era o de pele preta.