Pele negra sem máscaras brancas
“O Brasil não pode parar” era uma das frases que eu mais via, no início da epidemia do novo coronavírus, ser papagaiada dentro ou fora das redes por quem subestimava a “gripezinha” que virou o desafio de uma geração. Mas quem foi que disse que o Brasil parou, cara-pálida? Como eu estou em home office, mas, assim como dezenas categorias, não parei nem posso, porque a notícia não para. O que mais tenho visto pelas ruas esvaziadas Rio afora é gente trabalhando, e muito. Profissionais de saúde, policiais, bombeiros, faxineiros, empregadas domésticas, funcionários dos comércios considerados essenciais… Inclusive, a primeira vítima fatal da doença na cidade foi justamente uma empregada doméstica que a pegou a doença dos patrões, com quem ainda estava trabalhando mesmo depois deles receberem o diagnóstico.
É essa maioria que possui a mão da limpeza, conforme já disse o xará Gilberto Gil, que segue trabalhando nos focos de Covid-19, muitas vezes sem proteção alguma que não seja custeada pelo próprio bolso. É só observar a lista de serviços que não poderão parar no Brasil durante esta crise: dos 35 itens, incluindo, assistência à saúde, assistência social, segurança pública e privada, atividades de defesa, transporte, telecomunicações e serviço funerário, pelo menos 23 têm o seu contingente de trabalhadores formado, em grande maioria, por gente de pele preta. Por isso é que eu vejo tanta pele negra sem máscaras brancas por onde quer que eu ande, já que um preto andar mascarado em uma cidade onde te olham torto e se recebe enquadramento da polícia apenas por estar de boné é, digamos, complicado. Mas há também exceções como a de uma funcionária terceirizada, negra e que usava máscaras e luvas para passar álcool, de tempos em tempos, nas grades da estação do BRT Jardim Oceânico. O ônibus articulado está proibido de circular lotado e, por isso, o espaço vive apinhado de gente que tem a mão da limpeza querendo voltar para casa. Quando cheguei para falar com essa mulher para uma reportagem, ela rapidamente me atirou um “não estou fazendo nada de errado”. E eu só queria lhe dizer que ela era a pessoa mais importante daquela estação.
Porém, o mundo off-quarentena não tem só gente preta ou quase preta de tão pobre que precisa pegar no batente. Na orla da Zona Sul, eu ainda posso ver muita gente bronzeada que, em vez de mostrar seu valor, quer sair de casa não por provas de que está tudo bem, mas por pura convicção. Gente que segue lotando os calçadões, os mirantes, as academias a céu aberto… E que se apinha com a certeza de que, caso pegue a doença porque resolveu brincar de roleta-russa viral, já está com o seu ventilador pulmonar garantido na UTI de algum hospital boutique. É gente que faz de tudo para justificar a própria irresponsabilidade, colocando-a na conta de Deus, de uma “histeria coletiva gerada por quem não quer que o país cresça” e que não hesita em tentar constranger agressivamente quem o questiona pacificamente por estar ali, como, por exemplo, o repórter em questão, preto e de máscara branca, que os indaga. Não existe mais inocente no Leblon.
Agora imaginem só se fosse o contrário: a periferia lotando as áreas de convivência das praias e os abastados bronzeados precisando ir para seus escritórios porque os seus trabalhos não podem parar. Imaginem se se a orla estivesse apinhada, hoje, dessa mesma periferia que é acusada de não gostar de trabalhar, de trabalhar mal ou de mamar nas tetas do governo com os milhões de 178 reais por mês que o Bolsa Família lhes dá. Se fosse assim, não haveria uma só praia desta cidade que não estaria completamente gradeada neste momento. Além disso, todos os ônibus que saem dos subúrbios diretamente para as praias seriam sumariamente extintos ou cortados ao meio nos fins de semana. Brincadeira, isso já tem sido feito.
Uma epidemia global é o momento em que o racismo brasileiro, outrora tido como velado, se torna um elefante branco na sala de estar. É o racismo praticamente domiciliado. A união e a solidariedade também estão dando as caras muito bem, concordo, mas o racismo, esse sim, está em seu momento de ouro. Como brilhantemente pontuou o criador do termo necropolítica, o filósofo e cientista político camaronense Achille Mbembe, em entrevista recente à Folha, o sacrifício sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo. Assim, esse sacrifício, baseado na ideia de que uma pessoa vale mais do que outras — assim como no Brasil se acredita que o trabalho intelectual teria mais valor do que o braçal — , sugere que, caso alguém tenha que ser sacrificado em nome da economia, que seja quem usa, a princípio, mais os músculos do que a cabeça. E qual é a cor do trabalhador braçal brasileiro? Ganha uma camisa da CBF quem adivinhar.
Essa dependência parasitária que uma classe sociorracial tem sobre a outra representa mais o Brasil do que futebol e samba, já que ambos são meios de sobrevivência e ascensão social historicamente associados aos negros. Afinal, os que estão teimando por essa “volta ao trabalho” estão promovendo carreatas, e não passeatas, para não precisarem ter o mínimo de contato físico com aqueles que garantem o seu conforto. Se fossem conservadores de verdade, bem que poderiam ter substituído os carrões por liteiras.
Apesar dessa irresponsabilidade-ostentação, seja dos bronzeados nas praias ou dos engravatados em seus carros, eles podem voltar quando quiserem para as suas casas, diferentemente de seus funcionários ou empregados que tiverem o azar de cruzar o seu caminho. Quando a epidemia estiver em seu pico, eles poderão ficar quietinhos em suas casas, como se nada tivessem feito enquanto os mesmos trabalhadores estarão, como sempre estiveram, fazendo o Brasil andar. Por isso é que este momento epidêmico vai se provar, a cada dia que passa, como a total inversão do título daquele longa afrofuturista do Adirley Queirós: preto sai, branco fica.