“PRETO TEM QUE MORRER EM CASA”

Coletivo Pretaria
3 min readDec 4, 2020

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Ouvi uma vez que não devemos compartilhar as nossas fobias por elas serem altamente contagiosas. Por isso, prometo que só vou compartilhar essa porque eu sei que ela é bem comum a muita gente, tudo bem? Então lá vai: morro de medo de passar mal na rua e não ser acudido. Falo de passar mal bem mal mesmo, de precisar sentar no chão ou desmaiar sem tempo de pedir socorro. E isso independentemente das pessoas possivelmente me reconhecerem no bairro em que moro na Zona Sul carioca.

Carlos Eduardo Pires Magalhães, o Carlinhos, por exemplo, era bem conhecido em Ipanema. Carlinhos, que era uma pessoa em situação de rua, costumava dormir na calçada de um banco para aproveitar o ar fresco que saía dele. Carlinhos tinha tuberculose em estado avançado e, na sexta-feira da semana passada, entrou na Confeitaria e Lanchonete Ipanema pedindo ajuda para que alguém chamasse uma ambulância para si. Carlinhos estava tossindo ao ponto de cuspir sangue e ninguém lhe deu atenção. Carlinhos caiu morto e teve o corpo coberto por um plástico preto por duas horas. A padaria não parou o funcionamento por conta da morte de Carlinhos, apenas escorou o corpo com cadeiras. Carlinhos foi enterrado na quarta-feira em Nilópolis, na Baixada Fluminense, depois de os familiares passarem seis dias até conseguirem identificar o corpo e liberá-lo para o enterro. Carlinhos tinha 39 anos, sete irmãos e deixou uma filha e dois cachorros.

O corpo preto, coberto por um plástico preto e escorado como um produto descartado no meio de uma padaria em funcionamento em pleno Mês da Consciência Negra reflete bem um país que não faz questão alguma de cuidar de sua maioria. Em 2014, 60% das mortes de gestantes no SUS foi de mulheres negras e, das crianças, 47% eram negras. De acordo com a prefeitura de São Paulo e o Observatório Covid-19, pretos têm um risco 62% maior de morrer por conta da covid-19 somente na capital mais rica do país.

Para os pesquisadores que redigiram o artigo “Racismo institucional: um desafio para a equidade no SUS?”, por exemplo, o racismo no sistema de saúde já havia tomado patamares de pandemia em 2006. O tio de um auxiliar de enfermagem, que deu entrada em um hospital após ser baleado em um assalto, por exemplo, foi tratado como se ele fosse o assaltante. No mesmo trabalho, uma enfermeira preta de 32 anos relata como foi tratada em um hospital particular: “A recepcionista demorou para me dar atenção e quando eu entreguei o cartão do convênio, ela olhou duas vezes para mim, pediu o meu RG, coisa que não havia feito com outras pacientes brancas, ela parecia não acreditar que eu pudesse pagar o convênio. Nos tratam como um ser de segunda categoria, até mesmo a solicitação do documento de identidade, pode ser interpretado como ‘tirar a prova real’, será que essa pessoa realmente é beneficiária deste plano?”. Na sequência, uma cabeleireira preta de 54 anos declarou que um médico a destratou e disse que “preto tem que morrer em casa”.

No país em que pessoas pretas são “claramente” discriminadas nos serviços de saúde, Carlinhos nem mesmo conseguiu chegar até ele para tal. Carlinhos morreu sem conseguir respirar no país que produz um caso George Floyd a cada 23 minutos. Por isso, nesta minha última coluna deste ano, eu gostaria de fazer uma oração: Deus, lhe suplico, livrai-nos de morrer de Brasil.

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