Resistir na língua: Lupin (Netflix, 2021), criatividade, estratégia e nova coragem para receber, enfim, e com nome, a primavera

Coletivo Pretaria
4 min readJul 19, 2021

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Sinto cada vez mais dificuldades em comunicar, ou estabelecer a comunicação, considerando-se a linguagem — leia-se a Língua Portuguesa. Porque desgastados, talvez, os sentidos enquanto horizontes práticos e éticos, a linguagem já não mais os comunica ou a si própria. Entretanto, a leitura da última coluna do querido Gilberto Porcidonio neste Pretaria reacendeu compreensão além de diversa, mais esperançosa: a novilíngua absurdada dos fascismos bolsonaristas no presente tempo deve ser desarticulada pela criatividade própria da língua e suas autorias em recomunicar o horror da alegria roubada via genocídio. Embora se nos tirem a palavra, viver apesar dela, e dizer a vida, ainda parece caminho para refazer o futuro em hora grave — aliás, depois dela. E haverá outra hora.

Sim, Cecília Meireles (1901–1964), é verdade, a primavera chegará mesmo a quem já não mais saiba seu nome, acredite no calendário ou não tenha jardim para recebê-la. Grata, Gil, por recordar-nos, afinal, ê nosse pretoguês.

Foi lembrando-le, que cheguei a algumas conclusões sobre Lupin (Netflix, 2021), produção Netflix (França, EUA) estrelada por Omar Sy (Intouchables) na pele de Assane Diop, o ladrão de casaca da Paris contemporânea inspirado no célebre personagem Arsène Lupin (Maurice Leblanc, 1907) de mesma lavra. Com vistas a responsabilizar o branco rico homem pelos crimes contra, digamos, o sistema financeiro os quais levaram seu pai à prisão injusta e suicídio no cárcere, o negro menino e homem Diop inspira-se naquela persona literária para, com estratégia e inteligência, obter justiça. Acerca do gênero e outros desdobramentos na produção cultural francesa e mundial, o texto já escrito de Henrique Oliveira oferece panorama privilegiado, e contundente, na matéria.

Com estratégia e inteligência, sabendo-se negro e como operam os racismos, na sutileza de cada ação, sob planejamento meticuloso, sagaz e futurista — sim, o projeto de futuro pós-ação existe –, a reparação vai assim se tecendo. Claro, observar e conhecer a operação das estruturalidades e opressões não garantem 1) êxito pleno/recorrente, 2) seu desmantelamento a curto prazo e/ou 3) sua reatualização. Entretanto, o aparente fracassado esforço semeia no mesmo tempo as bases de consolidação do sucesso, enfim, no possível — presente e futuro.

Com inspiração na estratégia, inteligência e futurologia de Diop/Lupin resolvi, então, imaginar, tecer e articular, ao menos entre a língua, desejo de justiça e reparação aes crimes por que fomos tornades testemunha e cúmplice. É sob a inspiração das ancestralidades das diásporas nacionais, suas criatividade e genialidade, que pretendo ser e comunicar o que nos sabemos, mas ainda não somos ou não perdemos o medo de ser em razão de traumas, memória(s) e corpo-mente preses em uma infância subjugada. Baldwin (1924–1987) explorou a si e a negritude para revelar-se humano ao mundo e, por isso, gigante. Permitiu-se conhecer entreolhares, sobretudo nes detratories, para reconhecer e definir amorosamente a própria imagem. Qual Baldwin e Diop, conheçamo-nos e refaçamos com criatividade, inteligência e estratégia o jardim de uma sabida, e nomeável, primavera.

Nós a falaremos, e numa boa.

P.S: ainda em referência à coluna passada, deixo abaixo indicados podcasts narrativos que, à semelhança de Vidas negras, iluminam outras negras histórias brasileiras, estadunidenses e do mundo unidas entre o Atlântico e o existir no território corpo do além-mar.

História preta: apresentado por Thiago André, História preta é, segundo autodefinição, sobre memória histórica da população negra no Brasil e no mundo. Dentre tantas preciosidades, desfilo o episódio destaque de Maria Firmina dos Reis (1822–1917), a pretautora pioneira da literatura afro-brasileira e abolicionista, talvez, da América Latina.

The humanity archive: Jermaine Fowler ilumina a história da agência negra em território nacional como texto para o debate do legado do racismo na sociedade estadunidense e seus desafios, incluindo-se aqueles sofridos por comunidades não-negras, para o projeto democrático do país.

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