Setembro Amarelo: o suicídio preto, periférico, lgbtqi+

Coletivo Pretaria
5 min readSep 14, 2020

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Em 10 dezembro de 2019, o Pretaria.Org | Coletivo Pretaria foi um dos homenageados da mandata Renata Souza com o Prêmio Carolina Maria de Jesus, no contexto do Dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Foi um dia de muita alegria pelo reconhecimento do trabalho que realizamos no campo das comunicações, além do fato de estarmos, Katiúcha Watuze e eu, tensionando e marcando nossa presença junto a todas as iniciativas e coletivos co-irmãos na Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro) em um espaço de poder e, ao mesmo tempo, arena em que se travam tantas batalhas para garantir cidadania às nossas, aos nossos, es nosses.

Na ocasião, me sentei ao lado de Indianare Siqueira, militante e ativista do Movimento LGBTQI+ no Rio de Janeiro, fundadora da Casa Nemque acolhe pessoas LGBTQI+ e que recentemente sofreu ação de reintegração de posse, porém já garantiu endereço definitivo — e fiquei incrivelmente agradecida pela oportunidade de estar em sua presença, naquele espaço tão opressor, ombro a ombro. Puxei assunto, falei rapidamente de minha profunda admiração pelo seu trabalho, pela sua luta, por ter brilhado no cinema contando sua história, nos beijamos e nos abraçamos.

Porém, minutos depois Indianare atendeu uma ligação e eu não pude furtar meus ouvidos de seu comentário ao celular: “eu estou arrasada, não dormi essa noite, SE MATOU LÁ MESMO NA CASA NEM.”

Um nó na minha garganta imediatamente se formou. Fiquei absolutamente transtornada com aquela rápida conversa dela. Eu não sabia do ocorrido e me senti culpada por isso. Havia me dirigido à Indianare pouco antes sorridente, com alegria, e só depois desse telefonema percebi que ela não estava bem. Havia sentido, quando nos cumprimentamos, um ar de preocupação e cansaço inicialmente, mas jamais relacionaria com nada assim, um suicídio.

Quem era a pessoa? Qual era a sua história? O que levou a um ato tão extremo, tirar a própria vida? Ali mesmo na Alerj peguei meu celular e entrei no perfil da Casa Nem no Instagram, para saber se havia alguma publicação sobre. Não quis perturbar a Indianare com detalhes. E lá estava. Ela se referia a Renys, bixa preta acolhida pela Casa Nem, que havia se suicidado na noite anterior, 9 de dezembro de 2019. Lendo o texto do post pude dimensionar os porquês das perguntas que havia feito a mim mesma, intimamente.

Dirigi-me novamente à Indianare, dizendo que eu não pude não ouvir a conversa que ela havia tido no celular ali, do meu lado, e que sentia muitíssimo pela morte de um jovem preto e bixa, que trazia consigo sofrimentos psíquicos pesados diante da falta de acolhimento e compreensão, diante das opressões sistemáticas dirigidas ao seu corpo preto e bixa, da incapacidade da sociedade enxergá-lo enquanto sujeito, dotado de inteligência, subjetividade, afetividade, dimensões que o faziam humano e que lhe foram NEGADOS.

Confesso: esse episódio foi o mais próximo de um caso de suicídio que eu me deparei a minha vida inteira, até hoje. Existe um tabu imenso em torno do suicídio que invisibiliza o tema. E invisibiliza duplamente suas vítimas quando não dão a devida importância deste ato no cotidiano social.

Sou servidora da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e o principal campus da Universidade fica no Maracanã, no Rio de Janeiro. É formado por um complexo de prédios, divididos em blocos, altíssimos, de 12 andares. Os suicídios naquele perímetro são frequentes, porém são abafados, não são noticiados, provavelmente com a desculpa de não causar espécie ou mal-estar na comunidade universitária. É uma atitude pouco estratégica no sentido de desperdiçar oportunidades reais de debate e enfrentamento ao tema, reunindo sua dimensão transdisciplinar para seu reconhecimento epidêmico.

Estamos no mês mundial de prevenção ao suicídio. Dia 10 de setembro foi Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. E a campanha Setembro Amarelo, criada em 2015 pelo Centro de Valorização da Vida (CVV), tem o objetivo de promover a prevenção do suicídio através da conscientização e discussão do tema, com o slogan “Falar é a melhor solução”.

Dados dão conta de que “o suicídio é a última das causas externas de morte (CE) (que incluem homicídios e acidentes) a apresentar concentração de casos (80%) em países de baixa e média renda. Há literatura consolidada identificando a violência estrutural como determinante para as CE, mas pouca quanto ao suicídio.”

O texto acima foi retirado do resumo do artigo Suicídio e violência estrutural. Revisão sistemática de uma correlação marcada pelo colonialismo. Esse enorme problema de saúde pública precisa ser entendido como a ponta de experiências pautadas em violências sistemáticas dirigidas a determinados grupos, agravando enormemente as possibilidades de sobrevida das populações marginalizadas abaixo da linha do equador.

Isso não quer dizer que grupos privilegiados não sejam passíveis de terem problemas que levam ao suicídio. Fato é que grupos humanos que são privados de viverem plenamente suas vidas e que por conta de causas multifatoriais — como falta de políticas públicas que lhes garantam plena cidadania e oportunidades, as opressões de raça, de gênero e de classe que minam existências e matam, DE FATO (feminicídio, genocídio da população negra, homicídio da população LGBTQI+, guerra às drogas em favelas, quebradas e territórios periféricos) — e criam um cenário de constante pavor e esvaziamento das vidas interseccionalizadas.

Como ter vida sem viver com liberdades garantidas? Como viver em constante desvantagem e alvo das mais cruéis violências, de forma cotidiana, sem trégua?

Coincidentemente, ontem recebi em um dos (inúmeros!) grupos de WhatsApp de que faço parte, o vídeo de Felipe Pinheiro, publicado no IGTV do Filhos da Rua (coletivo preto da Zona Oeste)

Leia o artigo publicado no site Filhos da Rua, que relaciona racismo e depressão, além de revelar a maior propensão da população negra de desenvolver doenças mentais hereditariamente.

Existe um samba intitulado “Amarguras”, do Fundo de Quintal, que traz em seus primeiros versos questionamentos fundamentais ao sentido da vida:

“E que vale a vida se eu não tenho a sorte?

Se a alma é fraca, pra que corpo forte?

E pra que sorrir, se não há esperança

De se ver surgir o dia da bonança.”

É preciso dar atenção EXTREMA à nossa saúde mental. Sobretudo diante de um cenário pandêmico, em um Brasil distópico, para dizer o mínimo. Para vivermos inteires precisamos de PROPÓSITO, AFETO, ACOLHIMENTO. Fiquemos vives e unidos para que, juntes, possamos construir e ver surgir o dia da bonança para todes nós.

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Coletivo Pretaria

ACERVO DE COMUNICAÇÃO DECOLONIAL, INTERSECCIONAL, ANTIRRACISTA, CIDADÃ E COMUNITÁRIA ATUALIZADO POR MEMBRES DO COLETIVO PRETARIA. UM PROJETO DO PRETARIA.ORG