Sobre boletos, morte e vida.

Coletivo Pretaria
4 min readApr 5, 2021

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E então: o que é a Morte?

Para começar, deixo a observação de que esse texto tem como pano de fundo a Covid-19 e a tragédia que une a doença, os fatores históricos e sócio-econômicos, e a conjuntura política do Brasil, mas que não é exatamente sobre isso, apesar de tudo isso estar aqui percebido, sentido…

Talvez esse texto seja sobre tantos questionamentos que estão pairando sobre nossas cabeças nesse momento, pode ser até que seja julgado um texto banal e fora de contexto, mas devido a uma certa liberdade de escrita que essa coluna me permite, resolvi seguir.

Em tempos tão mórbidos como esse, por mais que escolhamos uma certa ou completa alienação, seja por motivos de não saber lidar ou por motivos de “saúde mental”, ou mesmo por total egoísmo, crueldade e apatia política, a morte tem feito parte do nosso dia a dia, das nossas conversas online, das nossas conversas nos apps, das nossas interações.

E, para quem escolhe não fugir, a sensação tem sido um misto de medo, perplexidade e indignação, alternados com tentativas de racionalidade, fé e esperança, para tentar seguira. Afinal de contas existe algo imperativo sobre nossas cabeças: os boletos.

Boletos de toda a ordem, de toda a sorte, de luz, de água, de interne — e até do próprio óbito — que nos regem a seguir. Talvez essa seja a maior de todas as escravidões, porque você pensa em lutar, mas tem o boleto. Você quer descansar, mas tem o boleto. Você quer fugir, mas tem o boleto. Então seu cérebro vai lá e dá um jeito de te fazer escapar. Escapar da realidade para poder conseguir ter forças para “fazer o que tem que ser feito” e pagar o boleto.

Será a morte deixar de pagar boletos? Será?

Nesse processo de “não ter como não pensar” e de alguns momentos de racionalidade lembrei das mortes de familiares que tive que enfrentar ao longo da vida. Primeiro que há um dado importante aqui, separadas as questões de afeto, fazendo apenas uma análise fria do fato em si, existem inúmeras questões a se observar.

É preciso ter dinheiro para morrer, o enterro, o transporte, o cartório, tudo é custo e custa. Sem tempo de chorar pelos seus, você será sugado para uma série de atividades mórbidas a partir do óbito em si. E lá vai seu cérebro de novo te ajudar a “fazer o que tem que ser feito”: pagar o boleto morte.

Também é preciso saber que todo e qualquer problema-boleto |boleto-problema ficará como herança para os seus que ficarem por aqui, isso me chamou muita atenção. Não o fato de que quando você vai, você deixa boletos-problema para trás, mas o quanto a morte representa o que você foi em vida.

Existem as mortes que são de invejar. Eu invejo até hoje minha bisa, que morreu dormindo. Olhando para a vida dela, talvez se encontre a resposta. Ou talvez seja mais um dos mistérios sem resposta que cercam o tema. Ela era rezadeira e não deixei de pensar, mesmo racionalizando, que talvez sua fé tenha sido seu crédito para tanto benefício, por ela ter passado a vida rezando pelos outros. Ela também não deixou heranças e nem problemas-boleto | boleto-problemas. Pessoas que não acumulam, que vivem com pouco, que não querem o último celular e que não tem mais que dar conta das despesas de filhos, normalmente sem boletos, simplesmente vão: é uma espécie de sumiço.

Há quem saiba morrer. De tamanha consciência do fatídico fato do morrer se prepara e, ao se preparar, cuida dos seus, por não deixar o tal boleto-problema | problema-boleto pendente.

Já existem aqueles que, tão confusa e trágica quanto a vida é a morte. Uma morte que perturba os seus e deixa um rastro de dor e desordem pelo caminho, para além da dor da ausência.

Pensar sobre tudo isso passa por pensar diretamente pelo que vale viver, o que me fez voltar a escrever. O existir precisa ser registrado. É preciso marcar-se vivo, por isso faz tanto sentido escrever.

Mesmo errando, mesmo talvez não abordando o assunto da melhor maneira ou com os melhores argumentos, existem, aqui, dois elementos fundamentais: uma necessidade latente de entender a morte para conseguir não sucumbir aos tempos de hoje e uma segunda necessidade latente de entender pelo que vale viver.

Elaborando tudo isso, resolvi escrever.

Posso dizer que não cheguei a nenhuma conclusão específica, mas queria compartilhar algumas reflexões. Uma delas é que a vida vale cada segundo, não pelo boleto que acaba imperando muitas das nossas ações e atitudes, mas por aqueles poucos minutos em que você faz uma nova descoberta ou aprende a fazer algo que não sabia fazer e consegue fazer bem feito. Vale a pena pelos outros. Vale por cada primeiro beijo a cada novo amor. Vale por cada amizade que nasce, por cada vida. Vale por aquela música que você se apaixona na primeira estrofe… Vale a pena.

E se vale a pena viver, vale a pena lutar pela vida.

Boleto-vida imperativo.

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