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Tenhamos piedade de nós

3 min readOct 25, 2021

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Se, com Grada Kilomba (2019), entendêramos sobre a plantation como organização continuada das relações racial-societárias na modernidade estendida (aqui, compreendo-a desde os Quinhentos luso e inflexionada nos Oitocentos brasileiro, aí território independente na diáspora africana), talvez só saibamos agora, se o fazemos, o que significa pensar, sentir e mobilizar ação e plataforma de luta sob a abordagem traumática — procurem saber. O racismo castista (Wilkerson, 2020) e a traumatização são dos recursos materiais, simbólicos e, em especial, psíquico-subjetivos da supremacia branca e capitalista patriarcal (heterocissexista monossexual) na hierarquização e classificação, inclusão e exclusão da humanidade em suas formas não precarizadas de vida, para ficar com a síntese de bell hooks quanto à interseccionalidade dos sistemas de opressão-dominação no jugo de corpos racializados e feminizados. Em cores locais, geografias, história, economia política e cultura distintas, tais tecnologias sofisticam-se, distinguem-se novamente e persistem com vitalidade indesejável.

Em períodos de recrudescido avanço neoconservador e (raci)fascista, traumas seculares são rançosamente reencenados, porque ainda cicatriz aberta e forclusa, ou seja, denegada e desprezada, nesta ordem, entre ferides e agressories. Medo, hipervigilância, congelamento traumático como reação neuroceptiva ao perigo do extermínio físico ou da perda virtual de vantagens sociais oferecidas unicamente via brancura — e não pela capacidade ou incapacidade própria de realização — seguem causadores das nossas, compartilhadas mazelas jurídico-politicamente enfrentadas no globo.

Sem acrescer novos pontos de exclamação a libelos e larga produção teórica já conhecida a respeito, decidi elencar o que, em um único dia, já há séculos convivemos — e, por alguma razão, ainda suportamos conviver.

A tragédia à brasileira reencontrou em atos e no 7 de outubro a ! (fatorial) remontagem de seus piores dramas: o projeto de distribuição gratuita de absorventes higiênicos (PL 4968/2019, de autoria da deputada federal Marília Arraes, do PT/PE, e outras 30 parlamentares) a corpos que menstruam (sobretudo pretos e pobres de meninas e mulheres cis, homens trans, pessoas transmasculinas, não-binárias e intersexo) recebeu veto da presidência da República; mães pretas e solo desempregadas foram condenadas pelo furto de peças de carne, miojo, refrigerante e suco em pó, e uma delas recebeu sentença pecuniária. Fora considerada reinicidente e, por isso, “perigo à sociedade”; um estuprador notório foi absolvido em segunda instância, mesmo com provas reiteradas de seu crime (basta denunciar, dizem); a Justiça autorizou a construção de uma fábrica de cerveja no sítio arqueológico onde o fóssil Luzia foi localizado; e, por fim, o retorno de gestantes ao trabalho presencial foi aprovado, a despeito dos riscos ainda existentes.

Já não bastassem, o feminicídio seguido de violência sexual (estupro) de Joice Maria da Glória Rodrigues, 25 anos — ela foi asfixiada e concretada em uma parede — é noticiado como ocorrido “após sexo feito com” por um de seus assassinos. Qual afirmou Djamila Ribeiro em sua coluna ao jornal Folha de S.Paulo (08/10/2021): “[…]. Um país que convive natural e diariamente com estupro, agressão, morte e abandono é um país fadado a ser amaldiçoado. É um país de genocídio de mulheres”.

Para efeito de recordação, no Brasil, ocorre um estupro a cada oito minutos, segundo dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O país detém um dos maiores índices de feminicídio no mundo — é o quinto no ranking — , é campeão em casamento infantil e por mortes em decorrência da criminalização do aborto, e onde 5,5 milhões de crianças não possuem o nome do pai na certidão de nascimento (evento, aliás, multicausal).

Em 8 de outubro, o Brasil atingiu o índice de 600 mil vidas perdidas para a Covid-19.

Não sei quem mais precisa ter piedade de nós. A bem da verdade, sugiro que passemos nós a tê-la e encerrar, enfim, tamanho ciclo de sofrimento.

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