Todo tempo é tempo: ciclos, expansão, refazimento ancestral e o Viver
Compreensões de processos da vida, sobre ela e o viver, enfim, na presente passagem pelo planeta são, e serão, dada a continuidade, apenas alcançadas sob certo nível de maturidade e consciência emocionais. Ou não. Neste novembro, mês de renovação do meu ciclo solar e da atual experiência do Viver aqui, no entanto, e pioneiramente, atentei ao caráter duplo do número um aí pertencente e uma inferida urgência pelo entregar-se ao equilíbrio das contradições e/ou à paradoxalidade — como além-doxa — do experienciar-se em desequilíbrio (re)encontrado de forças rumo à expansão de um eu antifreudiano ancestral, cíclico e coletivo, porque intersubjetivado na humanidade autodefinida em si — para lançar mão de uma categoria existencialista sartreana. O Tempo é tempo e, qual passado presentificado,
entendo somente no recorte do agora que existir hoje é reviver a mim, com renovações, enquanto aquela resistente nos sonhos das mais velhas e jovens, contemporâneas e as ainda não-saídas de seus ventres matri/eugestores.
Em igual sentido, revi duas efemérides a mim particularmente muito relevantes também ocorridas no presente mês, e duo duplo (11/11), em outra chave: a ancestralização de Maria Firmina dos Reis (1822–1917), pretautora maranhense pioneira na prosa abolicionista e afro-brasileira de romance, mestra régia, jornalista, poeta e compositora — 2020 vislumbrará os 103 anos da partida — é, sim, a primeira delas. A mulher do riso mofador aos pares indiferentistas glaciais e patriarcal-escravistas guiou-me de volta para a casa — as letras — ; o movimento, antes insilar, cumpre-se agora migratório, conquanto único, próprio, potente e de direito. Reverencio-a. Peço perdão por nossa história de dor, incompreensões, desconfianças, silenciamentos e ostracismos. Escolho amá-la e retecer-nos, e a memória compartilhada,
diferentes. Sou(-lhe) grata. Fazê-lo permitiu-me reconquistar território expropriado e não sabidamente subtraído. Refizemo-nos, na esteira do eternizado pela escritora, ensaísta, militante antirracismo e mulherista lésbica caribenho-estadunidense Audre Lorde (1934–1992), linguagem e ação.
A segunda é o aniversário da revolução descolonial angolana celebrado ao décimo primeiro dia de novembro — em 2020, o quadragésimo quinto. O recém-vivenciado episódio de violência política da já nem tão popular república — em 24 de outubro último, o governo João Lourenço reprimira com força desproporcional as/ês/os cerca de 2500 manifestantes em marcha contra o desemprego na capital Luanda — reaproximou-me, contudo, e desconfortavelmente, das incontáveis decepções, e ansiedades, sofridas/a sofrer com os meandros das lutas pela superação definitiva/reparatória das mazelas históricas do colonialismo lusotropicalista e todo atraso financiado das parições coloniais escravocratas sobreviventes — vulgo classes dominantes interatlanticamente brancalizadas. Uma pergunta óbvia seria o motivo do interesse por este congênere africano. Digo: em minha curta trajetória acadêmica, constituí meu problema de pesquisa compreender a centralidade Brasil-Angola e suas relações no contexto da dependência imperial portuguesa com ou a partir da perda/retomada de Luanda (1641–1648), seu papel na liberalidade régia de Bragança e a questão do tráfico de escravizades africanes. A familiaridade construída entre escolhas hoje comprovadamente não-aleatórias respondia, na verdade, a novo duplo: um refazimento outrora negado/interrompido, ou o resgate desesperado de alguma arbitrariedade perpetrada/omissivamente testemunhada. A qual dos dois tudo me corresponde, bom, trato de desvelar.
Ainda sobre Angola, fez-me impressionar na leitura de texto do autor, romancista, músico e agitador cultural benguelense Kalaf Epalanga (Banda Buraka Som Sistema; ”Também os brancos sabem dançar”, 2017) à Revista Quatro Cinco Um a respeito da ida ao Orun do compatriota (cantor e compositor) Waldemar Bastos (1954–2020) e o projeto Kalunga (1980) o
relato des mais velhes acerca do então nascente país, sua guerra fratricida de emancipação e dos pilares aí corroídos jamais reerguíveis. Se nas aventadas ruínas da catedral de São Salvador do Congo, diz Epalanga, as linhas dos discursos antiunionistas e pró-lusofilismo encontravam os últimos ecos, a utopia kalunguiana de restauração do império bacongo, decaído ante as invasões lusitanas só há pouco cessadas, arfava na dor irritada da decepção o último suspiro. Entretanto, e curiosamente, completa, o pedido de respeito ao luto pelos tais sonhos políticos perdidos — transmutados em romantismo burguês inócuo — retorna hoje ímpeto revolucionário e força qual imparável aos homens e mulheres atuais idealistas de fronteiras e gerações à frente, a despeito de eventuais adaptações (melhores ou piores). Esperançosa, comentei com o próprio Epalanga que as canções de exortação ao humanismo, como as vocalizadas por Bastos, jamais feneceriam aos embates e sangue derramado nas lutas pró-liberdade dos Atlânticos angolano e brasílico. A reunião uma vez cumprida em África, à época do (projeto)
Kalunga, consolaria os desejos ancestrais de presente radical e futuro outro àquelas/us/es gestadas/es/os durante e após a travessia — em descendência direta e/ou legado branco do horror.
Honrando estes anseios, sendo compreensão reconstituinte de mim mesma e coletivos diversos — insepultos ou não -, à luz da translação inaugurada, refaço-me promessa e realização presente-futuro de nossos sonhos por viver (bem), dignificar e reconstruir radicais na experiência reconhecida de humanidade unimúltipla, assim plural e (r)existente. Todo tempo é tempo (provérbio iorubá), e o tempo de melhor cumpri-lo, e à tarefa designada, é agora.