Frame de “Caixa D’água: Qui-lombo é esse?”, filme de Everlane Moraes.

Um corpo preto: o que e onde cabe?

Coletivo Pretaria
4 min readOct 14, 2019

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O CORPO PRETO É UM CORPO POLÍTICO.

O CORPO PRETO É UM CORPO FILOSÓFICO.

O CORPO PRETO É UMA LINGUAGEM EM SI.

O CORPO PRETO É UMA PLATAFORMA que sustenta o binômio Corporeidade — Oralidade.

O CORPO PRETO É UM CORPO ESTRANHO NO TECIDO SOCIAL RACISTA.

Sendo assim, buscamos epistemologias e correntes teóricas que promovam uma reação à altura, que deem conta do aporte histórico, linguístico, psicológico e existencial das nossas vivências, já que se torna imperativo restabelecer e ressignificar nossos lugares, nossos corpos, quando tudo o que existe é a partir da nossa morte.

“Precisamos ter coragem de dizer”, Aimé Cesaire nos alerta. A descolonização dos corpos e das mentalidades são urgências existenciais, tendo como fios condutores as análises dos sistemas de significação e representação culturais, bem como a dimensão da invisibilidade do ser preto na diáspora (proposto por Stuart Hall em Da Diáspora); e, ainda, lidando com o grande dilema do “ser prete”: branquear ou desaparecer, quando nas sociedades ocidentais o indivíduo preto é fobógeno e ansiógeno (provoca fobia e ansiedade), indo mais além, o mesmo racismo atravessa diferentemente os indivíduos, provocando danos psíquicos imensuráveis (como Franz Fanon nos revela implacavelmente em Pele Negra, Máscaras Brancas).

Para além desta realidade mapeada e bem conhecida, observa-se, hoje, o levante extremista, pseudo-nacionalista, neopentecostal, neoliberal, neoconservador, apresentando um panorama geopolítico que acirra e recrudesce o ambiente para pretas e pretos globalmente, emergindo narrativas e discursos em que o “ser preto” torna-se o centro de questões que arrastam-se secularmente (Achille MBembe).

Gostaria de oferecer uma perspectiva a partir do livro “Pensar Nagô”, de Muniz Sodré, que discorre sobre a violência cultural ou simbólica, a que chama semiocídio ontológico:

A reflexão hegeliana é pertinente ao se levar em conta o universalismo cristão, incrustado no universalismo da cultura, construiu-se em nome do espírito em detrimento do corpo. A separação radical entre um e outro é um fato teológico com grandes consequências políticas ao longo da história: no domínio planetário das terras e dos povos ditos “exóticos”, as tropas dos conquistadores pilhavam ouro e corpos humanos, enquanto os evangelizadores (jesuítas, franciscanos), pilhavam almas. A violência civilizatória da apropriação material era, na verdade, precedida pela violência cultural ou simbólica — uma operação de “semiocídio”, em que se extermina o sentido do Outro — da catequese monoteísta, para a qual o corpo exótico era destituído de espírito, ao modo de um receptáculo vazio que poderia ser preenchido pelas inscrições representativas do verbo cristão.

O semiocídio ontológico perpetrado pelos evangelizadores foi o pressuposto do genocídio físico. (Sodré, Muniz. Pensar Nagô — Petrópolis, RJ: Vozes, 2017 p. 101)

Ou seja, sempre foi um projeto o nosso extermínio e ele começou de forma muito eficiente: alienando nosso sentido de ser e existir — por sermos desprovidos de espírito — nos forçando a dar voltas e mais voltas na árvore do esquecimento, nos destituindo dos nossos pressupostos culturais e simbólicos para que nos tornássemos CORPOS MATÁVEIS. Existe uma lógica, um racional, uma construção para justificar nosso extermínio, para fazer desaparecer nossos corpos.

Sendo assim, reontologizar é preciso. Precisamos ser nossos próprios restituintes do nosso sentido de ser e existir. Enxergo, para tanto, a comunicação como esse grande campo, onde estão circunscritas as diferentes linguagens — referenciais e artísticas — que dão suporte às nossas representações: a inscrição, autoinscrição, o alcance das narrativas, dos discursos, das cadeias de valor, produção e realização através dos imaginários que construímos e carregamos.

A comunicação a que me refiro é necessariamente interseccional e que suas teorias estejam sendo revisionadas por epistemes afrodiaspóricas e africanas. O revisionismo comunicacional e demais revisionismos teóricos de diferentes campos do conhecimento estão em curso, já que a exclusividade filosófica/epistemológica greco-europeia não dá conta das nossas experiências, sabemos.

Vislumbra-se, assim, janelas de oportunidade para o reconhecimento e fortalecimento dessas epistemologias a partir da perspectiva de uma educação transgressora em via de mão dupla — educador e educando em “equilíbrio dinâmico de transgressões”, com a intenção de romper estruturas eurocêntricas de ensino e acessar aprendizados contra-hegemônicos — que preveja o contato com as questões da contemporaneidade: política, cultura, raça, gênero, sexualidade, como bell hooks nos oferta em “Ensinando a Transgredir: A educação como prática da liberdade.”

Eu utilizei como suporte visual à minha fala esse frame do filme “Caixa D’água: qui-lombo é esse?” de Everlane Maraesa, que entrega a silhueta do corpo negro emulando o “Homem Vitruviano”, obra emblemática de Leonardo Da Vinci, símbolo máximo da humanidade universal. Um homem preto dotado de humanidade, um homem preto de proporções divinas perfeitas, o homem ideal sendo ele PRETO.

Nele tudo cabe. Sempre coube.

E cabe onde for na medida das fissuras, dos alargamentos, das distenções, dos deslocamentos radicais que produzimos enquanto caminhamos sobre os escombros da grande noite do mundo, como sentencia Achille Mbembe.

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