Um Menino, um Anjo, um Rei
Neste Dia das Crianças, gostaria de falar da infância negra através do meu filho. Confesso hoje, publicamente, que quando me descobri grávida — não foi uma gravidez planejada — fui tomada por medos, em vários níveis, que se apresentavam de diferentes formas.
Não planejar uma gravidez me tomou de culpa. Não planejei porque nunca pensei em ter filhos. Acreditava que minha vida não caberia a enorme responsabilidade de não só gerar uma vida como, também, contribuir na construção e formação de um indivíduo. No meu caso, um indivíduo PRETO.
Eu e minha irmã nascemos e crescemos em um lar afrocentrado. Minha mãe e meu pai estavam lá na gênese do Movimento Negro Unificado, em 1978. Algumas reuniões, inclusive, aconteciam na nossa casa. Assim, diferentemente da maioria das famílias pretas brasileiras, a dimensão do tornar-me negra jamais foi uma questão. Meus pais se separaram e as coordenadas estavam postas, o trajeto delineado, os posicionamentos sendo ensinados e aprendidos por mim, minha autoestima negra sendo lapidada pelas mulheres da minha família, minha mãe e minha avó, para suportar as investidas de uma sociedade racista.
Esses esforços e essas estratégias foram cruciais para que eu e minha irmã pudéssemos viver nossas existências plenamente, embora não tenham nos livrado das situações racistas que certamente experimentamos. Porém, estávamos protegidas pela nossa própria construção preta e pela CONSCIÊNCIA DA NOSSA NEGRITUDE. Isso é extrema e continuamente trabalhoso, em se tratando de um país que silencia e invisibiliza pretes desde o nascimento.
Diante da magnitude da missão pode ser potencialmente desencorajador ter filhes pretes. Existe uma supressão sistemática da infância preta que o racismo perpetua no país da abolição inconclusa. No país que não prioriza o desenvolvimento e os direitos humanos, a cidadania, o bem-estar, a educação, a saúde e os sonhos de crianças e jovens pretes. Pelo contrário: naturaliza violências físicas e psicológicas, muitas vezes perpetuados e tornando seus impactos irreversíveis.
Hoje, Milsoul Santos, do IPEAFRO (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro Brasileiros), publicou em suas redes o relato na voz do Mano Brown de um Dia das Crianças do álbum “Nada Como Um Dia Após O Outro Dia”, dos Racionais MC’s. Um relato que eu havia ouvido algumas vezes antes, quando eu sequer pensava em ser mãe: já era devastador demais de ouvir. Ao ouví-lo novamente hoje, apertou o nó na garganta que eu sinto desde quando eu me descobri grávida. Esse nó dado há 4 séculos, difícil de desatar.
Voltando ao tema da coluna, quero falar do meu filho, João Gabriel Menelik. A esse menino demos 3 nomes próprios, dois diaspóricos e um de Áfricas, de um Grande Rei Etíope — país que conseguiu resistir à dominação e ao imperialismo europeus. Tem 3 nomes próprios, porque ele era, é e sempre será infinito em nossas vidas. Porque ele é a missão que eu não escolhi, me foi ancestralmente dada. Ele me ensina muito mais do que eu poderia ensiná-lo. Eu pedia, na pré-pandemia, para que ele não corresse pelas ruas, mesmo quando seus amigues estivessem correndo sem preocupações, porque ser preto é sentença, não importa a idade.
Eu e o pai dele afrocentramos ainda mais nossas vidas para que ele entenda tanto a enorme beleza quanto as implicações de sua existência. Falamos sobre a maravilha que é ser Amefricano. Associamos nossos passos a um caminhar pela ética em tudo o que somos e fazemos. Vivemos a leveza e a luta indissociavelmente. Isso é extrema e continuamente trabalhoso, como foi para a minha mãe, para a minha avó e para toda a minha ancestralidade.
A missão está em curso. E nesses quase 11 anos esse é o nosso MAIOR projeto. Nosso maior AMOR. Nossa razão de existir. O que nos dá sentido.
Quero compartilhar o que seria uma poesia que escrevi assim que soube que estava grávida de um menino. Nunca tive dúvidas de que seria um menino. Eu senti fortemente o peso da missão. O título da poesia é o título dessa coluna.
Ouvi o chamado de uma terra distante
Pelas bandas africanas do quase Oriente
Anunciação maior e não esperada
Depois de uma vida inteira errante
Pedindo aos céus e, ainda, ao onipresente
Agulha da bússola, reta e afiadaLéguas de amor atravessaram o oceano
Ouvi: “chegará seu Menino de pés no chão”
O meu legado estaria apenas no início
O sentido da vida deu a graça este ano
Minha redenção chegou e se chama João
Tá fácil essa vida que parecia difícilAquele que salva é puro na alma
Ganha da água, da terra, do fogo e pode voar
Parece elemental na forma de um Anjo
Só de ver e saber que existe, acalma
Gabriel habita aqui dentro e pode morar
Mais um nome para o mesmo arcanjoTerra que ninguém pisa o soberano é Menelik
O mestre já disse “Todo Menino é um Rei”
E no meu coração ele manda e desmanda
Faz bater forte e ilumina, feito fogos, flash num clique
Uma alegria que contagia, eu sei
Com ele ao meu lado nada desanda