UMA GRAÇA PARA O AGORA

Coletivo Pretaria
3 min readJul 2, 2021

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A língua brasileira é o puro sumo da riqueza, mas, mesmo assim, não é capaz de abarcar tudo. A professora Lélia Gonzalez estava certíssima ao afirmar que o que nós falamos por aqui, de fato, é o pretoguês (que me perdoem os puristas, mas colonizar a língua do colonizador é fundamental), assim como o haitiano que voltou do futuro disse que “estava falando brasileiro”, mas a língua, para a felicidade dos poetas, é incapaz de abraçar tudo aquilo que é representativo de um momento naquele momento.

Eu por exemplo, tenho inúmeros casos pessoais em que eu não consigo nomear apenas de “racismo”, pois foram coisas que me tomaram muito mais energia do que a palavra parece abarcar. O dia em que um amigo — repetindo: um amigo — me chamou de “macaco” na frente do meu pai, por exemplo, e que eu fiquei sem reação alguma, é uma lembrança que eu costumo me conectar propositalmente sempre que vejo que preciso ser mais enérgico do que de costume para bater de frente com este tipo de situação. Então, isso não me pareceu ter sido apenas uma situação de racismo. Foi como se, ao mesmo tempo em que me dessem uma rasteira, me tampassem a boca com uma máscara de flandres. Foi um assassinato dentro da minha própria zona de conforto que era a amizade, o que me fez ser algo que não era até aquele momento. Algo que, apesar de eu saber exatamente o que foi, que eu ainda não consigo encontrar nome.

Por isso, eu acredito que a busca de uma graça — ou seja, um nome — para se definir um momento crucial seja um dos principais processos para que se dê o verdadeiro peso que a situação merece. Os judeus sabem fazer isso muito bem quando chamam de “Shoah” o processo nazista que levou ao extermínio dos seus durante a Segunda Guerra. Shoah, em iídiche, quer dizer “calamidade” ou “catástrofe”, bem diferente de “holocausto”, que significa “sacrifício a Deus”. Não houve sacrifício nenhum dentro dos campos de concentração. E muito menos anseio divino.

Da mesma forma, a palavra “Maafa” me parece sendo a que tem o peso mais correto para se falar do processo massivo de sequestro de gente preta africana para a morte por exaustão nos campos de concentração ocidentais. Maafa, em suaíle, quer dizer “grande tragédia” ou “desastre”, e foi utilizada pela primeira vez pela antropóloga americana Marimba Ani em seu livro “Let the circle be unbroken: The implications of african spirituality in the diaspora” (Permita que o círculo seja inquebrável: as implicações da espiritualidade africana na diáspora”, em tradução livre), de 1992. Maafa é o que aconteceu no Brasil durante os 388 anos em que nossos avós trabalharam de graça até morrer. Uma tragédia humanitária de escala global não pode ser apenas comportada pelo termo escravidão, que joga, em sua primeira semântica, a questão tão somente para o processo econômico. E o plano econômico mais duradouro que o Brasil já teve.

E cá estamos nós, em meio à vertigem de estar no centro do furacão de uma tragédia, catástrofe e/ou calamidade que já assassinou mais de meio milhão de brasileiros, tendo superado todos os mortos da Guerra do Paraguai e se configurando, a cada dia e a cada sessão da CPI da Covid, como o maior crime organizado contra a saúde pública da história do Brasil. Não podemos mais chamar isso tudo só de pandemia porque o vírus não é o único agente que está agindo em prol de que aconteçam mais mortes, e também não podemos chamar só de genocídio porque, além de não afetar só uma classe ou raça — mesmo que seja mais implacável com a população negra — os genocidas, geralmente, têm motivos muito mais claros e muito menos de enriquecimento próprio. Os inomináveis estão nos fazendo passar por algo que ainda não tem nome e que fica entre as atitudes do ex-presidente sérvio Slobodan Milošević, do imperador romano Nero e do pregador Jim Jones. E todos tiveram uma milícia para si.

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